Search
Close this search box.

A difícil arte de girar sobre os calcanhares

Edson Aran

Perambulava eu outro dia por um clássico da literatura de entretenimento – em tradução recente, é bom que se diga – quando tropecei na seguinte frase:

“Ela girou sobre os calcanhares e saiu da sala”.

Fiquei atordoado.

Fiquei bestificado.

Fiquei estupidificado.

Como assim?! Eu não lia a expressão “girar sobre os calcanhares” desde os anos 30 do século 20. Nasci bem depois disso, é claro, mas naquela época era comum a gente se inteirar sobre o passado. Bons tempos.

O que não era comum, nem ontem e nem hoje, era uma pessoa “girar sobre os calcanhares” sem cair de bunda no chão. Tente pra ver. Se você não for o Michael Jackson é tombo na certa.

Um dos truques da literatura é evitar literatices para que o leitor se sinta parte da ação e o “giro” acaba com o clima.

Por exemplo:

“Com a faca afiada numa mão e a língua decepada na outra, Belonísia girou sobre os calcanhares e saiu do barraco”.

Tá vendo? Não funciona.

Outro exemplo:

“Zuza e Manel estavam pelados na Serra Pelada. Curió viu os dois esfregando as carnes estranhas e girou sobre os calcanhares para não atrapalhar o furunfar dos gay-rimpeiros”.

Basta acrescentar calcanhares giratórios que o naturalismo sai correndo pra nunca mais voltar. 

Tem uns troços que só fazem sentido na página impressa, jamais na realidade nua e crua da rua.

Tipo assim:

“Rael viu passar o último ônibus pro Capão Redondo e, desesperado, gritou a plenos pulmões:  

— Macacos me mordam! O próximo só circula nas primeiras horas da manhã!”

Tudo errado. Ninguém “grita a plenos pulmões” e “macacos me mordam!” só faz sentido em livro do Tarzan.

Você por acaso já viu alguém exclamar “Pelas barbas do profeta!” ou “Por favor, me belisque!” diante de algum fato surpreendente? Eu, nunca.

Agora, tem coisas das quais sinto saudade imensa no meu peito varonil.

Olha só: 

 “Era um quarto passado das duas e ele não tinha feito seu lanche, havia comido apenas o pequeno almoço, bem cedo de manhã. Ele resolveu fazer uma parada no Joe’s antes de voltar ao seu escritório na delegacia de polícia.

Shirley, a garçonete, o recebeu com um sorriso quente e um café frio. 

— O habitual, querido? – ela perguntou.

— Hoje não, docinho. Traga-me whisky de centeio e uma cerveja escura. Vou fazer um almoço líquido.”

Almoço líquido sempre funciona. 

Deixe um comentário

Posts Recentes