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A reverberação das vozes afro-brasileiras em uma sociedade limitante

Por Laisa Lima

Imagem: Dra. Silvia Barros

Quase na beira da praia de Icaraí, em Niterói, cidade que integra o estado do Rio de Janeiro, em um dia tipicamente solar nos tempos de veraneio carioca, a Dra. Silvia Barros, nascida no Rio Grande no Norte, mas criada no Rio, concedeu ao Culturize-se uma entrevista que abrangeu não apenas sua nova obra, mas também o aprofundamento de questões como colonialismo, negritude, resistência, educação e racismo.

Dra. Silvia é professora, pesquisadora na área de autoria negra e autoria feminina, e doutoranda em literatura brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Participou de movimentos de escrita coletivos, como Cadernos Negros, volumes 41 e 42, Negras Crônicas etc., além de ter alcançado a carreira solo inicialmente em um livro que compila 11 poemas autorais, “Em Tempos de Guerra”, difundido nos anos pandêmicos.

“Literatura de Autoria Negra” constitui o cerne de sua pesquisa, que norteia o estudo da afrodescendência na literatura juntamente com a participação tupiniquim na mesclagem desta área artística. A produção, realizada pela editora Intersaberes, conduz o leitor através de um mundo de mitos, verdades e vozes caladas, enquanto repassa os estigmas e estereótipos em que eram – ou são – enquadrados as figuras negras inseridas nas narrativas constituintes do imaginário brasileiro.

A educação

“A resistência é para sempre. A luta é constante.”

Como instrumento de fomentação da cultura universalizada, a escola retém um grande valor quanto a capacidade de moldar as novas gerações e garantir que seus conhecimentos sejam mais democratizados. Entretanto, “sozinha ela não dá conta”, observa a professora.

O acesso a discursos recentemente disseminados traz caras desconhecidas para o universo dos estudantes, fator básico para aproximar o indivíduo em formação de todas as distintas especificidades que constituem um ser humano, destacando as heranças africanas e afro-brasileiras. É preciso, então, que o contexto seja um pilar nesta jornada. Segundo Dra. Silvia, a mídia, alguns núcleos familiares e cenário político mascaram o que é um movimento necessário em todas as áreas.

Descrito por ela como uma manifestação de frequente avanço e recuada, a mobilização social em prol do ensino sobre as demais culturas – especialmente as que compõem as maiores partículas de nosso DNA – deveria abranger o coletivo como um todo. Todavia, certos educadores estão nesta luta por si só, ou o entrave na rede de educação é uma grande barreira.

A rotina de um professor, incluindo o salário diminuto, é igualmente um empecilho para um ensino continuado, em que os projetos acerca do assunto engrandeçam a grade em todos os anos letivos. “Vai faltar tempo, vai faltar apoio, vai faltar parceria… tem que ser um projeto abraçado por todos, para que a gente comece a ver isso, os frutos disso, de forma concreta”.

Lei nº10.639

A lei de número 10.639, publicada em 9 de janeiro de 2003, prevê o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira em todas as instituições escolares, públicas ou privadas, do país. Sobre o cumprimento dela, a pesquisadora diz que sim, há avanços; mas não é um simples projeto ou uma única leitura acerca da pauta, espaçados entre os anos letivos, que farão uma grande diferença na realidade. “Ainda é preciso se voltar para como o cumprimento da lei deveria ser”, expressa ela, levando em consideração ainda a interdisciplinaridade que tais tópicos conseguem alcançar.

O racismo

“É o rebaixamento das pessoas negras que manteve os privilégios brancos”.

Para Dra. Silvia, o racismo se baseia no conceito de cordialidade racial, também descrito em seu livro. Por intermédio da passividade em relação a miscigenação, o Brasil tornou-se um “paraíso racial” onde negros e brancos coexistem, teoricamente, de forma igual, constituindo até núcleos familiares.

Entretanto, após estudos de filósofos, sociólogos, e afins, a noção de que a interracialidade não é perfeita em nosso solo, dado os conflitos discriminatórios na sociedade vigente, foi confirmada.

“Para pesquisar, precisa-se de alguém que de fato se interesse pelo assunto […]. Por isso que é importante que haja cotas raciais, por isso que as políticas ditas afirmativas são fundamentais”.

Ademais, a falta de visibilização de pessoas negras como produtoras artísticas, segundo a pesquisadora, é um fruto recorrente do racismo, que adere ao apagamento dos ícones afrodescendentes históricos para perpetuar a hegemonia branca.

Imagem: Divulgação/ “Literatura de Autoria Negra”, Silvia Barros

O colonialismo

A herança africana é dotada de uma enorme relevância não somente para as ações comportamentais de povos como os caribenhos, latino-americanos e os do Brasil; a arte foi igualmente influenciada pela diáspora dos países vindos da África, que tiveram contato direto inclusive com a tradição oral e escrita destes e de outros vários locais.

Com a inserção cultural do Ocidente, parte das lembranças criadas nos primórdios devido às referências africanas se perderam entre a imposição de um novo conjunto de memórias.

“Nossa literatura tem uma predominância branca e uma mentalidade centrada na Europa. O que nós estudamos nas escolas e nos cursos de Letras é uma tradição clássica, aquela que fundamenta a literatura, mas [a literatura afro-brasileira e africana] sempre é colocada como – quando é falada – um apêndice.”

A resistência

“O racismo, que estrutura nossa sociedade, fez com que a autoria negra fosse considerada algo menor ou algo que tem menos valor e qualidade, talvez por justamente ter esse discurso de que ali é apenas um espaço de ativismo e não de arte”.

“Literatura de autoria negra” exibe um fundamento da resistência iniciada por obras literárias que reivindicam o lugar de menosprezo sofrido pelo povo afro-brasileiro. Ver uma bancada de livros escritos somente por negros dentro de uma livraria, de acordo com Dra. Silvia, é, além de um progresso, um símbolo de objeção.

Dentre romances, poesias e ficções, Dra. Silvia reconhece o antagonismo à supremacia ocidental no âmago das produções de autores negros, destacando:

Maria Firmina dos Reis, primeira mulher negra a escrever um romance no Brasil;

Luís Gama, poeta dos anos 1800 que falava sobre negros e negritude;

Lima Barreto, romancista que colocou uma protagonista negra sem romantização de feminilidade em sua obra;

Conceição Evaristo, maior autora de literatura negra brasileira de todos os tempos;

Itamar Vieira Junior, que, com o recente livro “Torto arado”, está entre os mais vendidos desde 2019, além de ser inspiração para uma série da HBO.

Imagem: Reprodução/ Itamar Vieira Junior

Outro ponto vinculado a resistência está no empoderamento de manifestações inicialmente enraizadas na cultura africana. O Carnaval, por exemplo, vem ressaltando sua verdadeira matriz através de desfiles e sambas-enredos que ecoam a ancestralidade, a espiritualidade e a arte afro-brasileira, negados por um longo processo de afastamento.

 “Os grupos dominantes vão dominar aquilo ali também”, explica a escritora.

O empobrecimento da população, a ascensão das pessoas na comunidade e até mesmo a quarentena, trouxeram à tona a necessidade de se conectar com o passado, já que este é algo fincado no indivíduo, sem possibilidade de retirada.

E, a tomada de consciência do lugar da pessoa negra diante da exclusão ofertada pelo racismo, é um ato, ainda que revolucionário, ameaçador, visto o privilégio branco.  

Logo, é preciso falar sobre isto, escutar novos discursos e expressar as referências no momento em que o indivíduo achar oportuno. “Isso ajuda a se proteger mentalmente, proteger as relações sociais – já que as pessoas que não são signatárias do racismo, estão comigo – e se proteger também de situações constrangedoras”, afirma a professora.

A negritude

“As vezes, a exaltação da miscigenação, é o apagamento da negritude”.

Exposta por Dra. Silvia como uma junção de sentimentos formadores de uma consciência, a negritude, considerando seu pensamento, é sempre libertadora. Afinal, por meio dela a enublada sensação de minoria é descartada da percepção de uma pessoa negra, cuja vivência gira em torno da marginalização da raça e do racismo frequente.

“A consciência racial é o que permite que a gente escreva como uma pessoa negra e viva como uma pessoa negra”.

A autovalorização e autoaceitação também seguem por este caminho de descoberta da própria negritude. Por isso, esta concepção só é limitadora para os limitados, a exemplo dos negacionistas a despeito da segregação racial. A autoria completa ratificando que “não podemos esperar que todos estejam preparados”.

“É ter consciência de que tem expectativas muito fixas do que as pessoas negras devem ter, ou falar, ou fazer. E quando você escolhe fazer só o que quer, você desmobilizou esta expectativa”.

“Literatura de Autoria Negra” será lançado no dia 20 de fevereiro.

Imagem: Reprodução

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