Por Laisa Lima
A realidade paralela é, por vezes, o subterfúgio de quem possui a criatividade aflorada. Entre vivenciar sua existência e criar momentos vindos de sua própria mente, é mais leve – e divertido – a segunda opção. E, já que o cinema em si é uma grande falácia, existem muitos e muitos filmes de escapismo dos protagonistas; “Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas” (2003), de Tim Burton, nos conduz por fábulas irreais e reais ao mesmo tempo, enquanto em “As Aventuras de Pi” (2012), dirigido por Ang Lee, o público prefere acreditar no que provavelmente nunca aconteceu. Agora, em “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades” (2022), de Alejandro González Iñárritu, a passagem do crível para a fantasia é feita por meio da loucura de um homem preso à margem de seu cotidiano.
Iñárritu vive em Hollywood, mas não perde a oportunidade de criticá-la. “Bardo”, então, conta a história do possível alter-ego do diretor, chamado de Silvério Gama, um documentarista morador de Los Angeles a 20 anos que recebe um prêmio em sua terra natal, o país latino-americano México, pelo novo projeto documental, necessitando estar presente no dia da premiação. Já perceptível neste trabalho audiovisual do protagonista, são encenados delírios simbólicos pautados na melancolia sequencial carregada por ele, sempre acompanhado também de uma metalinguagem algumas horas difíceis de se adentrar.
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Nas idas e vindas de “Bardo”, o que se vê são resquícios de um ser humano em completa confusão e estafa psicológica, não apenas representado pela falta de linearidade da trama, mas pelas produções grotescas de seu imaginário frente a situações que de fato ocorreram. Aos poucos, a linha tênue do verídico com o fantasioso se esvai ao termos compreensão desta mentalidade dúbia e perturbada de Silvério, que é capaz de recriar a morte de seu primogênito no parto como uma decisão do bebê de permanecer no útero, por exemplo. Independentemente da carga de estranheza que tais cenas detém, a simbologia fixada nelas torna-se óbvia devido ao entendimento de que, embora o cunho de paródia esteja ali de forma constante, ela nunca é em vão, resvalando na intenção de não parecer sem um significado relevante, como a questão do patriotismo exacerbado ou do complexo de inferioridade exibido por alguns, incluindo Silvério.
Dentro destas mensagens subliminares, está uma das maiores feridas a serem mexidas na obra: a subordinação da nação mexicana (ou do mundo?) em relação aos Estados Unidos. Em resposta ao sentimento de colonizador deste último citado, Iñárritu envolve tópicos como imigração e xenofobia para questionar em alto e bom som se o país norte-americano pode ser chamado de casa até pelos que lá residem. Em sequências grandiosas e bem coreografadas, com direito a bandas marciais, cenários gigantes e diversos figurantes, “Bardo” incita a indagação existencialista por parte de todos que consomem outra cultura sem a refutar. Logo, a crítica social, econômica – visto que a manutenção do capitalismo é igualmente questionada – e até cultural disseminada no longa-metragem, atinge esferas para além da vida de uma única pessoa; coletivizar o que está dentro da sociedade o filme faz muito bem.
Ainda que não menospreze o local que lhe deu consagração, Iñárritu põe o pé na porta ao desacelerar a ideia de que o diretor transformou-se em americano em sua completude, dedicando ao México uma carta aberta que não expressa apenas revolta; as danças, a trilha sonora e até os objetos cenográficos recordam uma atmosfera mexicana, além do discurso exposto em “Bardo” voltar-se totalmente para a exaltação do país. Entretanto, os dramas de Silvério – interpretado, aliás, brilhantemente por Daniel Giménez Cacho – perpassam o resgate à identidade mexicana; a relação com a esposa, com os filhos, com os colegas de trabalho e consigo, são definidos com maior sensibilidade para que a tristeza e a falta de propósito do documentarista tenham um bom fundamento. E, ao passo que o elo familiar é de suma importância para o personagem, seus filhos, principalmente, parecem uma âncora em um lugar onde não se quer estar, afundando-o sem a intenção.
Há distintos pontos dentro do filme: a relação México x Estados Unidos, o envelhecimento, a solidão, o tratamento familiar, o linchamento social por meio das mídias, a banalidade dos relacionamentos atuais, etc. É notório que Iñárritu sabe os separar destinando um local certo para cada um, sempre por trás do viés irônico e exagerado, nos quais até os movimentos de uma coreografia do protagonista é expressivo em demasia. Entretanto, a pretensão do diretor em empregar uma potencialização de suas características já conhecidas em trabalhos mais fora da caixinha, como “Birdman”, alia-se ao que ele não quer transmitir: a sensação de ser um blockbuster ala estadunidense. Os longos planos sequências, típicos do artista, em “Bardo” são conectados a uma câmera holofote, que ilumina o que precisa ser iluminado, mas não trazem nada de irreverente ou só diferente a seu estilo. Iñárritu trata as encenações como devem ser tratadas dentro de sua proposta, mas apresenta pouco além do que conhecemos.
“Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades” é um Iñárritu puro. Pode ser por se tratar de uma persona do cineasta exausta da fama e da inautenticidade, desejando regressar às suas origens, ou por condensar suas especificidades ao longo de 2h39 minutos. Cheio de si, o diretor não poupa o que tem de melhor; as longas sequências estão lá, assim como a exibição da intimidade de maneira sentimental e as flutuações de uma filmagem integrante da ação. Porém, engrandecer-se muito a ponto de não sair da zona de conforto nem sempre alça a perfeição. No longa-metragem, o exagero, que embora seja visto nos filmes do diretor desde “Amores Brutos”, anula um pouco o sentimento requerido, dado que só é nítida a mirabolância destas cenas. Afinal, estamos sim inseridos na mente insana de um homem cansado que ferve grandiosidade, porém é necessário que haja a sabedoria de quando é hora de voar ou de parar.