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Um velho repórter policial decadente é o anti herói de “Chuva de Papel” de Martha Batalha

Baqueado por testemunhar décadas de tragédias, Joel Nascimento é o jornalista sem nenhum glamour que encanta focas nas redações e fará o mesmo com o leitor

Aline Viana

O mais recente lançamento de Martha Batalha, “Chuva de Papel” (editora Companhia das Letras), é uma daquelas obras com um anti herói cativante e desbocado que nos faz atravessar de um fôlego só as décadas de suas memórias (mais ou menos) gloriosas e aterrissar com o coração comovido ao final da trama.

Somos levados a acompanhar o repórter aposentado Joel Nascimento por uma análise em busca de um bom ponto para dar cabo da própria vida no lugar mais improvável de todo o Rio de Janeiro, o bairro de Copacabana. Ou ao menos, assim parece para quem só conhece a cidade pela mídia.

Joel, ao contrário, é cria do Rio: se tornou repórter na época da ditadura militar e lutou a duras penas para sobreviver na profissão. Repórter policial numa cidade em rápida transformação, clivada pela luta de classes e pela disputa entre agentes do crime cada vez mais poderosos, ele não tem a capacidade de “desver” o que a censura ou a autopreservação não permitiram publicar nem mesmo no jornal sensacionalista no qual bateu ponto por anos a fio.

O personagem é uma homenagem que a autora presta às centenas de repórteres que parecem tão velhos quanto os pilares das redações dos jornais brasileiros, que se fizeram nas ruas sem faculdade e educaram no dia a dia centenas de focas (como são conhecidos os jornalistas novatos).

Pessoas com histórias inacreditáveis sobre a cidade e o País, sobre a vida privada de tempos que não são tão antigos, de fato, mas já nos soam remotos. Ilustres anônimos com delírios de grandeza que anseiam contar suas histórias para se manterem vivos.

Qualquer pessoa tinha vocação para notícia, nem que fosse para preencher o obituário. O extraordinário não era o fim, mas o cotidiano”

Marta Batalha em “Chuva de Papel”

Após anos casado com a profissão, ele se vê alcoolista, com vários casamentos desfeitos e descendentes espalhados pelo Rio de Janeiro, perseguido pelas dívidas e sem ter onde morar, ele desiste. Não tem viva alma que se importe com ele.

Porém, o cuidadoso planejamento sofreu com as repercussões de uma notícia imprevista (um prédio congestionado pelo panelaço contra a demissão do então ministro Sérgio Moro pelo presidente Bolsonaro) e de uma checagem rasa, de modo que Joel não morre. Pior: passa dias internado, ignorado até pelas enfermeiras até que um antigo pupilo o localiza e lhe oferece abrigo na casa de uma tia idosa e sozinha, que também se pretende escritora.

Ao morar com Glória, Joel se afunda na autocomiseração e mergulha em um embate de egos com sua hospedeira. Glória foi moça depauperada que sonhava em ser aeromoça, mas se tornou mãe solteira, cuja filha Cláudia “foi medicada, vestida e educada na base do empadão”.

“Dava mesmo para fazer a evolução da economia do Brasil de acordo com a qualidade dos meus empadões. Eu usava margarina na massa, e muita massa, durante os governos de Sarney e Collor. Itamar presidente, era empadão com massa de manteiga e camarão graúdo em cama de catupiry”

Marta Batalha em “Chuva de Papel”

Glória conta com a ajuda de Joel para terminar sua autobiografia já prometida para uma editora e com os prazos estourados.  Os rascunhos ela leva anotados em letra de mão num pequeno caderninho. 

O confinamento faz com que os sentimentos de ambos fiquem à flor da pele, ao mesmo tempo, que gesta o renascimento de Joel e Glória. Se não é épico, vê-lo dar os primeiros passos nesse mundo após “o novo normal”, é real, é palpável e singelo. Quando Glória solta a própria voz, percebe-se o quanto Batalha segurou aquele trunfo nas mãos.

“Chuva de papel” não promete arrebatar todos os públicos como “A vida invisível de Eurídice Gusmão” (Companhia das Letras, 2016) . Ainda que este livro possivelmente não entre para todos os cânones da literatura nacional, Joel Nascimento com certeza é o ultimato para que novos velhos repórteres deixem as coxias e resgatem o protagonismo literário dos batidos jornalistas “salvadores do mundo”.

Chuva de papel
Martha Batalha
Editora Companhia das Letras
224 páginas
Preço: R$ 64,90 (livro físico) e R$ 34,90 (e-book)

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