Sérgio Rodrigues coloca Machadão e Alencar numa aventura tresloucada pelo Rio de Janeiro do século 21 para impedir que suas obras sejam “traduzidas” para o leitor atual
Aline Viana
José de Alencar está no céu, convivendo com outros autores defuntos, inclusive seu contemporâneo Joaquim Maria Machado de Assis (aquele mesmo criador da Capitu) quando toma ciência de que cá na terra, em pleno século 21, estão querendo reeditar sua obra para torná-la mais palatável aos leitores. “P” da vida, ele resolve assombrar a acadêmica que está liderando tamanho despautério. Esse enredo fantástico é o mote de “A vida futura”, de Sérgio Rodrigues (editora Companhia das Letras, 2022)
Antes que o leitor se pergunte se isso de reescrever uma obra para torná-la mais “vendável” é possível, asseguramos que a resposta é “sim, com certeza”. Para isso, é preciso que os detentores dos direitos autorais da obra autorizem ou que a obra já esteja em domínio público.
Há casos, em que a tal da reescrita, como a proposta da professora do livro de Rodrigues, tenha por objetivo tornar a linguagem mais acessível, trocando termos que já caíram em desuso por sinônimos.
“Dostoiévski, aquele doudo, pregava o assassínio de todas as velhotas que se metessem com seu vocabulário e sintaxe”.
Sérgio Rodrigues, em “ A vida futura”, Companhia das Letras
Noutros, a obra toda pode ser simplificada, de modo a ser compreendida pelo público infantil – há versões de “Dom Quixote” e “Romeu e Julieta”, por exemplo, criadas por Maurício de Souza e estreladas pela Turma da Mônica. Nesse caso, a ideia é que os pequenos tenham um primeiro contato com um clássico.
E também há aquelas que fazem uma assepsia do original, com vistas a torná-lo politicamente correto. As vítimas mais recentes desse movimento são os livros de James Bond criados por Ian Fleming (1908-1964), os infantis de Roald Dahl (1916-1990) – autor de “A fantástica Fábrica de Chocolate” e “Matilda” – e de Monteiro Lobato (1882-1948), criador do sítio do Pica-Pau Amarelo.
Pelo olhar da sociedade de 2023, “termos sensíveis” é o que não faltam nessas obras, mas entregar uma versão “purificada” pode deixar de refletir a visão de mundo do autor e do tempo em que foram criadas. Não seria uma oportunidade para praticar a leitura crítica com os pequenos e jovens leitores?
O bruxo do Cosme Velho¹, alcunha pela qual Machado de Assis era conhecido em seu tempo, entra meio que de gaiato na missão de Alencar, movido mais pela curiosidade do que pela indignação e é ele quem irá narrar essa aventura com seu conhecido sarcasmo.
“Para resumir um caso comprido, meditei que um dos defeitos mais gerais entre nós, brasileiros, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério. Sabia-o antes de ser um autor defunto e mais o sei agora”.
Sérgio Rodrigues, em “ A vida futura”, Companhia das Letras
A dupla, ao despencar dos céus, vai ser logo apresentada à polêmica sobre a negritude de Machado. O autor, ao alcançar a fama em sua época, teria pelo poder de sua obra “sublimado” a pele negra, tornando-se “branco” para seus contemporâneos. Até hoje há quem acuse o autor de negar a própria ascendência (a mãe de Machado era filho de mãe portuguesa e pai descendente de negros escravizados) ao não dar protagonismo aos negros em sua obra.
O Machado de Rodrigues se mostra mais surpreso do que incomodado ao ser considerado um “autor negro” e não sabe o que responder quando um Alencar chocado o questiona a respeito. Aliás, poderíamos descrever como “#chocado” o estado mental do criador de “O guarani” ao longo de toda trama.
Se Alencar que conviveu com o nosso maior escritor ficou passado, podemos nos lembrar que, ainda na década passada, houve toda uma campanha publicitária com um Machado “branco”, com a melhor das intenções de exaltar os grandes nomes da cultura brasileira, mas colheu acusações de racismo. É triste admitir que essa pessoa não estaria sozinha no erro ainda hoje.
Machado reflete sobre essa questão no mesmo compasso no qual se apaixona por Mar, uma estudante de letras negra, não binária, de longas tranças coloridas, que mora em uma comunidade com a família.
Os autores novecentistas vão chegar em meio à quarentena por causa da pandemia de Covid-19; se meter com a milícia e o tráfico de drogas; se deparar com os desafios de linguagem neutra e da análise acadêmica superficial; das relações abertas e fluidas, e das mulheres hoje ainda mais misteriosas do que a musa do olhar de ressaca.
Amige leitore, esteja preparado para rir das desventuras dos dois acadêmicos – a passagem em que Alencar vira um “encosto” é impagável. Rodrigues entrega-se a uma sátira escancarada, a começar pelo nome da sua acadêmica, “Stella McGuffin” – “McGuffin” é o termo que define o objeto ou desejo que move uma trama, embora, seja insignificante em si mesmo.
McGuffin, como Machado, também é fruto de um casal de diferentes origens, com mãe brasileira e pai escocês. Seu passaporte para a elite financeira e intelectual é o casamento com um professor universitário já bastante estabelecido no meio acadêmico, assim como muitos personagens machadianos. E como eles, a intrusa, tão logo quanto possível, será defenestrada à sua condição social de berço.
Mas, como diz o narrador em um determinado momento, a cada vez que um leitor abre uma obra antiga, seu autor se “reacende” no céu. Desconhecemos, porém, se com as adaptações a luz é igual, mais fraca ou talvez no estilo “pisca-pisca”. O importante é que Rodrigues faz uma bela homenagem ao nosso bruxo e o reapresenta aos brasileiros com todo brilho que ele merece.
Ficha técnica
A vida futura
Sérgio Rodrigues
Editora Companhia das Letras
168 páginas
Livro impresso: R$ 64,90 | E-book: R$ 39,90
Errata 07 de março de 2023 – O leitor desta coluna, e também escritor, Sérgio Barcellos Ximenes, nos alertou que a alcunha “Bruxo do Cosme Velho” não é contemporânea de Machado de Assis. A autoria do apelido é do crítico literário Moysés Vellinho, mas se tornou famosa quando citada por Carlos Drummond de Andrade em seus poemas, conforme conta Cláudio Soares em artigo para a Obliq Livros.