Search
Close this search box.

‘Madame Teia”, “Pobres Criaturas” e a velha discussão sobre a função da crítica

Reinaldo Glioche

O esfacelamento conceitual da crítica de cinema começou antes do advento das redes sociais, mas foi agravado por ele. A despeito do desprestígio da atividade dentro do próprio escopo do jornalismo profissional, algo que a era da internet potencializou, ainda existia um apreço pela curadoria, pela valoração do debate, pela provocação intelectual que só a crítica, em um contexto cultural, é capaz de fomentar.

Bella descobrindo a feiura do mundo em “Pobres Criaturas” | Foto: Divulgação

Aí vieram os influenciadores, o parque de diversões da Marvel e a deturpação do que consiste uma crítica se deu por completo. Hoje a grande maioria dos textos que circulam na internet não são propositivos e reflexivos, mas deterministas, incrivelmente adjetivados e alinhados ao discurso vigente, seja ele emanado do marketing de estúdios, da correção política ou da escritura sagrada das redes sociais e bases de fãs.

O comportamento manada é, por definição, inimigo do pensamento crítico e este é o dilema moral de nosso tempo. Não apenas na avaliação e convalidação de filmes, mas na percepção de conflitos armados no mundo, do entendimento da polarização política no Brasil e por aí vai.

O debate, qualquer debate, é cada vez mais cerceado sob o véu da liberdade. É natural que a crítica, em geral, e de cinema, em particular, seja uma vítima, das circunstâncias, mas também dessa somatização social que vivemos.

Um filme pode não ser plenamente bom, mas ainda assim reunir uma quantidade de predicados a se apreciar. Um pensamento crítico prescinde da tentação de fechar um filme em algo bom ou ruim. O determinismo, via de regra, serve muito pouco ao ser humano, principalmente para aqueles que pretendem se abrir para o mundo.

Um filme pode ser divertido e eloquente emocionalmente e, ainda assim, apresentar vícios e incoerências dignas de registro crítico. A dualidade artística precisa ser manifesta no debate que se pretende por meio da crítica. Do contrário só há masturbação intelectual.

Essa é a sina posta diante da recepção a filmes como “Madame Teia” e “Pobres Criaturas. O primeiro, alvo de pesadas e agressivas críticas, a grande maioria fora do tom, por não se ajustar aquilo que um filme de herói deveria ser. Tem crítico de lastro no Brasil dizendo que o dinheiro aplicado no filme deveria ter sido usado em “alguma boa causa no mundo, que tem tanta necessidade”. Trata-se de uma desonestidade intelectual e um argumento que só busca ressonância em um julgamento pré-determinado, este na corte das redes sociais.

“Madame Teia” já era percebido como um guilty pleasure antes mesmo de ser lançado e foi algo até certo ponto estimulado pelo estúdio. Desde a escolha do casting até a concepção das cenas de ação, é perceptível que o filme, embora não aliene, não busca amparo no público clássico do gênero de super-heróis. A crítica de cinema que não percebe isso e, pior, não anota, se flagra pobre e despreparada. Refém de um pensamento umbilical com a mediocridade do lugar-comum.

Madame Teia (4)
Cena de “Madame Teia”, um belo de um guily pleasure | Foto: Divulgação

O peso das 11 indicações ao Oscar de “Pobres Criaturas” têm provocado reações exacerbadas ao cinema sempre efusivo e provocador de Yorgos Lathimos. Viralizou nas redes sociais a crítica da Gazeta do Povo explicando “porque não se deveria perder tempo com o filme”. A despeito da óbvia opção editorial pelo choque, há uma orientação de SEO (técnica para posicionamento no Google) que ranqueia bem chamadas desse jeito, algo alinhavado à opção de um cineasta mostrar repetidas cenas de sexo em um filme (?), a crítica parte de uma premissa equivocada de que deve “poupar” seu leitor de ver o filme e de que sua função é de avaliar um filme como bom ou ruim.

É importante notar, ainda, que essa involução da atividade crítica está compatibilizada com o que o público deseja. É um círculo vicioso de difícil desvencilhamento. É culpa tanto dos jornais que não investem no profissional, do TikTok e dos influenciadores, que abriram uma alternativa mais lucrativa e idiotizada à função, como do público, em sua maioria, que anuiu com esse empobrecimento que lhe é palatável.

A referência de crítica hoje é cada vez mais distante da que já foi um dia e o horizonte não é bonito.

Deixe um comentário

Posts Recentes