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Yasmina Reza usa uma lente de aumento para esmiuçar a vida a dois em “Felizes os Felizes”

“Se de perto, ninguém é normal”, a mesma regra se aplica aos casais na visão cômica e satírica da autora francesa Yasmina Reza em “Felizes os Felizes”

Aline Viana

A primeira vez que tomei contato com a obra de Yasmina Reza foi com o filme “Deus da Carnificina” (2011), dirigido por Roman Polanski a partir de uma peça homônima escrita por ela. Para quem ainda não assistiu, só digo que não dá pra manter essa mácula no currículo¹. Por isso, assim que eu soube que havia um livro novo dela disponível em português, não pensei duas vezes em trazê-lo para o Culturize-se. Trata-se de “Felizes os felizes” (Editora Âyiné, 203 páginas, tradução de Mariana Delfini).

Pense em uma autora que usa e abusa da sátira para apresentar personagens por demais familiares à nossa classe média lutando contra demandas entre o cotidiano e o absurdo absoluto.

Cena da adaptação cinematográfica de “Deus da Carnificina”, dirigida pelo cineasta franco-polonês Roman Polanski | Foto: divulgação

O livro é escrito de forma episódica, uma vez que a inspiração partiu de um convite dos diretores do canal a cabo HBO estadunidense, que encomendaram à autora uma série nos moldes do filme “Cenas de um casamento”, do cineasta Ingmar Bergman. Reza reviu o filme, considerou-o uma obra-prima, mas declinou do convite. 

Porém, a semente de uma ideia começou a germinar em sua mente. O livro, aos moldes de uma série, é dividido em 21 capítulos, cada um deles dedicado a um personagem, sendo que três deles protagonizam dois capítulos. 

Essa escolha permite que cada capítulo possa ser fruído de forma independente. Porém, aos poucos, o leitor vai se familiarizando com os personagens e vendo o romance se desenrolar. 

O título faz referência a uma fala do mestre argentino Jorge Luis Borges (“Feliz os amados e os amantes que podem abrir mão do amor. Felizes os felizes”, em tradução livre da epígrafe do livro, em espanhol, para o português), mas é inevitável que a mente nos transporte para outro grande nome, León Tolstói (“Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz ao seu próprio modo” – na tradução de Irineu Franco Perpétuo para a edição de “Anna Kariênina”, da editora 34). É pouco provável que seja mera coincidência.

Sejam casados, amantes ou solteiros, cisgêneros ou não, todos estão em busca da felicidade a dois. De formas mais ou menos convencionais. Mas ainda dentro da bolha do “que seja eterno enquanto dure”.

Afinal, as únicas relações verdadeiramente íntimas entre as pessoas só se desenvolvem a dois

Yasmina Reza. “Felizes os felizes” 

No capítulo de abertura somos apresentados a Robert Toscano, um jornalista que se vê diante de uma batalha campal com a esposa no supermercado. Eles se dividem e quando voltam a se encontrar, ela lotou o carro de fast-food para as crianças, enquanto ele pegou três tipos de queijo, mas esqueceu-se apenas do gruyere, o único digno de ser apreciado pela família na visão de Odile, a esposa.

Divulgação

A briga escala de forma rápida e ganha toques de birra infantil de ambos os lados, divertindo os demais consumidores do mercado. Que atire a primeira pedra quem nunca protagonizou ou nunca assistiu a um evento desses. 

Os demais personagens fazem parte do círculo de relacionamentos de Toscano: alguns mais próximos, outros mais transversais. É como “ser uma mosquinha” e pegar todas as fofocas em primeira mão.

Há outros momentos imprevisíveis e hilários, como a criança que é fã da cantora Céline Dion e ao crescer incorpora a cantora, passando a se comportar como ela em tempo integral. Os pais que eram invejados por serem, aos olhos dos amigos, o típico casal 20, sofrem em silêncio diante da situação insólita.  

“O magnetizador explicou que Céline Dion não era uma entidade. E que, consequentemente, ele não era capaz de fazê-la desgrudar de Jacob. A entidade é uma alma errante que se prende a um ser vivo. Ele não podia libertar um homem habitado por alguém que canta todas as noites em Las Vegas. O magnetizador me aconselhou a procurar um psiquiatra”. Yasmina Reza. “Felizes os felizes”

E há o desencanto dos mais velhos com a vida quando o futuro se apresenta. Cheio de pendências. De desgastes. Do que poderia ter sido.

Mas “Felizes os felizes” não é só sobre isso. É sobre rir de nós mesmos. É sobre aceitar o caos e tentar manter a esperança acesa. É possível dizer que Yasmina Reza é daquelas que acredita que há vida ou, ao menos, riso depois do casamento. 

Ficha técnica:

Felizes os felizes

Yasmina Reza

Editora Âyiné

203 páginas

Edição impressa: R$ 79,90 | E-book: R$ 47,61


¹“Deus da Carnificina” (2011) está disponível, no momento em que essa resenha é escrita, nos streamings Prime Video e Paramount+ .

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