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O humor encaretou? Como o tempo transformou o senso de comédia

É possível fazer humor sem transgredir? A correção política é apenas uma manifestação do zeitgeist? Comediantes brasileiros opinam sobre as circunstâncias de se fazer comédia atualmente

Por Nathan Vieira

A comédia passou e vem passando por diversas mudanças com o decorrer do tempo. No entanto, eventualmente a seguinte questão paira sobre o ar: qual é o limite do humor?  O caso mais recente, responsável por resgatar esse questionamento, foi o Oscar de 2022, em que o comediante Chris Rock fez uma piada sobre a cabeça raspada de Jada Pinkett Smith, esposa do ator Will Smith. A consequência da situação foi muito comentada mundialmente: o famoso tapa.

Em conversa com o Culturize-se, o humorista Fábio Lins (Prêmio Multishow de Humor, Improvável) comenta que a comédia passa por muitas mudanças, e envelhece muito rápido — e mal, geralmente. As mudanças têm acontecido com mais velocidade, devido à conexão das pessoas e a ascensão da internet. Essa nova realidade alterou a maturação do humor e estabeleceu um senso de urgência para questões que antes demoravam mais para serem problematizadas.

“Acho que tem relação com o movimento de progresso. É natural. Hoje, não se tolera qualquer coisa dentro do humor como se tolerava. Anteriormente, era mais fácil fazer piada com determinadas questões. Então sim, está havendo uma transformação, embora ainda exista um público grande que ainda está interessado em piadas ultrapassadas e preconceituosas”, pondera o apresentador.

O humor encaretou?

Reprodução/internet

Questionado se atualmente existe um certo cuidado para não ofender e para não agredir, Lins disserta que, no geral, existe um alerta maior pelo fato de que a sociedade amplia, aos poucos, o nível de consciência sobre diversos aspectos. A própria lei mudou, e passou a contemplar questões como o racismo ou a homofobia, por exemplo. “A questão é quem está ofendendo. A comédia pode servir como uma ferramenta para questionar/atacar o status quo”, observa. “E pessoalmente me incomoda quando essa arte é utilizada para estabelecer e manter o status quo”.

No livro The Comedy Bible, Judy Carter — maior referência nos estudos de stand-up, responsável por estruturar a construção de piadas para esse nicho — diz que não se deve fazer um “punch down”, ou seja, não se deve direcionar a atenção de uma piada a alguém que já costuma ser inferiorizado pela sociedade. 

“Muitos ainda circulam na lógica do bullying, que é bater em quem já está apanhando na sociedade. Tem se tomado mais cuidado aos poucos, sobre quem você está ofendendo e por que está ofendendo”, completa o humorista. Em contrapartida, o comediante Richard Godoy, também conhecido como Biscui (Na Sarjeta), enxerga o cenário atual com preocupação. “Eu me sinto acuado. Fico  com medo de ofender alguém, com medo de alguém sair chateado de um show. Embora eu converse com as pessoas no show e fale que tudo que vou dizer é parte de uma grande brincadeira, é chato ficar explicando e pedindo desculpas por brincadeiras que vou fazer. Eu fico bem preocupado com essa situação, e na hora de elaborar textos, eu preciso ficar pensando, repensando, e isso pode tirar a potência do texto”, declara.

Polêmica e influência

Dave Chappelle e Ricky Gervais/Foto: montagem sobre reprodução da Netflix

A influência do stand-up comedy é verdadeiramente forte em países como o Estados Unidos, onde comediantes são justamente fontes de inspiração para muitos artistas aqui no Brasil. 

É o caso de Ricky Gervais e Dave Chappelle, por exemplo, que servem de influência para muitos. Para se ter uma noção, Gervais protagonizou uma polêmica ao levantar piadas transfóbicas no especial SuperNature, lançado na plataforma de serviços streaming Netflix. O caso motivou reclamações dos assinantes, e a empresa chegou até a se posicionar a respeito. 

No ano passado, o especial The Closer, de Dave Chappelle, também atraiu críticas. Nele, o comediante diz que “gênero é um fato”. Segundo Lins, esses comediantes são de outra geração, e ainda não entenderam a importância de algumas questões. 

“Objetivamente, o humor não tem limites. É possível rir, a gente ri de coisas às vezes horríveis, e é possível de fato pensar comicamente ou ver piadas em muitas coisas. É um lugar um tanto delicado de perceber que a comédia está modificando o limite de acordo com o contexto.  Existe um limite que é a lei”, analisa. “Muitas vezes, querem disfarçar preconceito de arte, de humor, querem disfarçar preconceito com a desculpa de que é só uma piada. Eu acho que nunca é só uma piada.”

Godoy não vê as coisas do mesmo jeito: “O humor mudou, e não se pode hoje brincar com qualquer coisa. Ficou um pouco mais chato de se fazer. Está meio complicado porque você não pode falar, muitas vezes, o que você pensa, porque as pessoas podem brigar, cancelar.”

O artigo científico O politicamente incorreto na comédia popular, de André Carrico (UFRN), sustenta que o chamado “movimento de correção política” não é tão produtivo para a comédia nem para as minorias que o defendem. A proposta dessa vertente, ainda segundo o artigo, é isentar a linguagem de discriminação e ofensa, substituindo termos e expressões, piadas, imagens e representações a fim de evitar o racismo, sexismo, machismo e homofobia nasceu com a luta pelos Direitos Civis nos EUA, na década de 1960, e chegou ao Brasil na década de 1990, após a ditadura militar.

“O riso não tem uma função pedagógica, a priori. Em defesa do politicamente correto, engendram eufemismos para atenuar denominações consideradas, por aqueles que redefinem os termos, como pejorativas”, diz o estudo.

O artigo ainda sugere que “a tentativa de controle dos usos de linguagem e de representação cênica e pictórica de minorias não parece resolver o problema do preconceito, nem atenuar a violência.”

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