Filme que rendeu a Ruben Östlund seu segundo triunfo na riviera francesa tem apuro estético, ambição narrativa e crítica social potente, o que lhe afigura como um dos mais ressonantes vencedores da Palma em anos
Por Reinaldo Glioche
Esqueça a famigerada cena do vômito coletivo! Ela é engraçada e dimensiona muitíssimo bem algumas das balizas morais, sociais e culturais que o sueco Ruben Östlund enseja com seu filme, mas “Triângulo da Tristeza” inspira muitas reflexões, gargalhadas, sorrisos marotos e ‘eurekas’ para além dela.
Östlund tem o brilho de mudar o ritmo de sua narrativa mais de uma vez sem prejudicar seu filme. Uma ousadia da qual poucos cineastas saem impunes. A fusão de tensão e humor é uma constante em “Triângulo da Tristeza”, a começar pela gag que abre o filme, dividido em três capítulos que abarcam justamente essa irrupções narrativas.
O longa abre com essa zoação sobre a modelagem masculina e aproveita para situar a audiência das circunstâncias de Carl (Harris Dickinson), que já viu dias melhores na profissão e vive certa crise existencial no relacionamento com Yaya (Charbi Dean), que enxerga na relação apenas um outro job de influencer. A discussão entre eles sobre igualdade tendo como premissa a conta de um jantar é, desde já, um dos momentos mais inspirados do cinema de 2022.
É o trabalho de Yaya, que ganha mais do que Carl, como influencer que os leva ao cruzeiro capitaneado por Thomas, um impagável Woody Harrelson, um americano comunista angustiado “por ter demais” e que vive embriagado.
A insegurança de Carl em relação a Yaya será completamente ressignificada no ato final do filme, mas este é apenas um dos muitos méritos de “Triângulo da Tristeza”. O cineasta não se furta a observar as gangorras dos jogos de poder e as ironias, nem sempre óbvias, mas que seu olhar cínico potencializa, da vida. É nesse compasso que uma brincadeira com pensatas marxistas e capitalistas se torna um dos grandes ativos de um filme cheio de profundas reminiscências.
Embora seja conduzido como uma comédia satírica, com uma bússola sempre em riste, “Triângulo da Tristeza” ostenta comentários – sejam eles políticos ou humanistas – firmes, consistentes e, por vezes, desestabilizadores. É uma das obras de arte mais impactantes do ano. Por sua inteligência, por seu zeitgeist, mas fundamentalmente por tratar tudo isso com a devida inquietação.