Por Gabriela Mendonça
Censura, extinção de ministérios, ligação com o turismo, declarações polêmicas. Os quatro anos de Governo Bolsonaro foram cheios de debates e consequências que continuarão a permear a política por muitos anos. E um dos pontos centrais está a cultura e as políticas públicas relacionadas à sua promoção.
Na esteira de argumentos contra e a favor de projetos como a lei Rouanet e a “mamata” que acabou ou não, o setor cultural viu momentos importantes acontecerem, em meio ao que pode ser considerado um de seus maiores desmontes. “Pode-se dizer que tivemos um apagão”, comenta Marina Rodrigues, produtora executiva focada em políticas públicas no audiovisual e criadora do projeto “Simplificando Cinema”.
O primeiro grande ato do Presidente eleito em 2018, cumprindo uma promessa de campanha, foi acabar com o Ministério da Cultura. Logo, os órgão relacionados ao extinto ministério migraram inicialmente para o de Cidadania, antes de se fixar oficialmente dentro do Turismo, em Novembro de 2019.
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Censura e polêmicas
Ainda em 2019 o governo enfrentou a primeira polêmica com a suspensão de um edital divulgado pela EBC (Empresa Brasileira de Comunicação) que liberaria fundos para produções LGBTQIA+. Considerada censura pela classe artística e pelo próprio secretário de cultura da época, Henrique Pires, a suspensão rendeu a renúncia de Pires alegando que o ato era “a gota d’água” e que não iria “chancelar censura”.
Casos similares, classificados como proibições, seguiram permeando as decisões políticas nos anos seguintes. Em outubro de 2022, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação lançou um relatório que apontou as violações à liberdade de expressão no Brasil entre 2019 e 2022 no campo da comunicação. O material aponta que as violações no âmbito artístico foram “as segundas mais praticadas desde o início do Governo Bolsonaro”.
“Avaliamos que a institucionalização da violação à liberdade de expressão no país foi intensificada no setor cultural devido à presença de uma ala fortemente ideológica no interior do governo. A ala ideológica de Bolsonaro costuma atuar por meio de pautas de apelo moral – como questões de gênero e sexualidade, posicionamentos políticos alinhados à esquerda e/ou críticos ao governo, e temas relacionados à religiões, dogmas e religiosidades”, afirma o texto.
Entre os atos de censura indicados pelo documento estão uma exposição de charges do Presidente Bolsonaro no Rio Grande do Sul, a proibição da exibição do filme de Karim Aïnouz “A Vida Invisível” pelos funcionários da Ancine e a perseguição nas redes sociais à jornalista Petra Costa.
A inconstância foi outro ponto alto da Secretaria Especial de Cultura, bem como as polêmicas envolvendo os mandantes da pasta. Roberto Alvim passoutrês meses no cargo, e saiu em janeiro de 2020 depois de parafrasear um discurso do nazista Joseph Goebbels. Foi sucedido por José Paulos Marins, que passou outros três meses no cargo até a chegada da atriz Regina Duarte.
Apesar de entrar para pasta com a promessa de criar uma equipe com foco em diálogo e ações que beneficiassem a cultura, sua passagem também foi curta, e três meses depois ela deixou o cargo tendo como maior realização o discurso de posse onde enaltecia o “pum dos palhaços” como expressão cultural.
Foi só com a chegada do ator Mario Frias que a secretaria viu mais estabilidade, embora sem nenhuma realização concreta. Ele se manteve no cargo entre junho de 2020 até março de 2022, quando saiu para se candidatar a deputado federal. Sua passagem também foi marcada por polêmicas, incluindo relatos de que ele ia trabalhar armado, e uma viagem a Nova York que custou R$ 39 mil aos cofres públicos.
A mudança constante já é uma forma de mostrar descuido com a cultura, acredita Marina. “Toda vez que muda [o secretário especial de cultura] muda a estrutura. Até se organizar para ver se vai lançar alguma coisa, Bolsonaro já queria mudar de novo. Foi o modo que ele encontrou de dizer para quem não está atento que enxugou recursos do estado”, afirma.
Força e relevância cultural
As políticas públicas criadas em torno do incentivo da cultura brasileira foram quase totalmente paralisadas nos últimos quatro anos. Enquanto isso, um debate sobre “mamar nas tetas do governo” e a importância de produções artísticas tomou grandes proporções.
No centro do debate, a famigerada Lei Rouanet, que permite a captação de recursos privados e tem como contrapartida para as empresas que investirem a redução de tarifas fiscais. O valor máximo permitido captar era R$ 60 milhões, reduzido para R$ 1 milhão durante o Governo Bolsonaro.
Para Marina, o maior impacto das mudanças realizadas pelo governo Bolsonaro, com cortes na Rouanet e extinção do Ministério da Cultura à capilaridade, já que os projetos acabam não saindo do eixo Rio-São Paulo.
“Apesar da Rouanet promover eventos nas regiões nordeste, norte, centro-oeste, sul do Brasil, a capilaridade está muito restrita a esses pólos financeiros do país. Isso gerou um peso para outras cadeias culturais”, explica.
Nesse cenário, o setor audiovisual seria menos impactado, já que conta com a verba do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual). Porém, em 2020, em plena pandemia, o fundo contava com uma reserva de R$ 724 milhões parada há mais de um ano por falta de interesse político em fomentar a produção nacional.
A consequência disso é um cinema de pouco destaque, ancorado em alguns nomes com relevância internacional. Kleber Mendonça Filho, por exemplo, marcou presença no Festival de Cannes duas vezes nos últimos anos: em 2019, quando levou “Bacurau” para o tapete vermelho ao lado de Juliano Dornelles, e ganhou o Prêmio do Júri, e em 2021, quando retornou como membro do júri.
Ainda em 2019, Karim Aïnouz também se destacou em Cannes com seu “A Vida Invisível” e venceu a competição paralela “Un Certain Regard”. “Kleber e Karim já têm protagonismo internacional independente de recurso público e conseguem acessar esses festivais sem recursos da Ancine”, comenta Marina.
“Obviamente é positivo ter essa oportunidade, mas não é mérito do governo, é mérito do mercado internacional que não largou a mão do Brasil. Mas é restritivo: um produtor independente da região norte, por exemplo, não vai conseguir ir para Cannes fazer ‘pitching’, é muito caro”, completa.
Desafios do governo Lula
Com a eleição de Lula para o próximo mandato presidencial, a expectativa é que a cultura volte a ter destaque entre as políticas públicas do governo. Ainda candidato, ele anunciou a restituição do Ministério da Cultura como promessa de campanha. Recém-confirmada, a cantora Margareth Menezes vai assumir a pasta a partir de janeiro. Com isso, o primeiro desafio da nova gestão será justamente retomar a estrutura anterior.
O maior deles, porém, será retomar o crescimento cultural, que além de sofrer com a falta de repasses, enfrentou muitas dificuldades por conta da pandemia. Em 2020 foi regulamentada por Bolsonaro a lei Aldir Blanc, que promoveu o repasse de R$ 3 bilhões para estados e municípios, em caráter emergencial, para a manutenção de espaços culturais, e renda emergencial para trabalhadores do setor que tiveram suas atividades interrompidas.
Este ano, porém, uma segunda versão, com viés permanente, foi aprovada na Câmara dos Deputados. O projeto, que também já foi aprovado no Senado, prevê repasses anuais da União, também no valor de R$ 3 milhões. Bolsonaro, porém, vetou a Lei em maio, alegando que o projeto é “inconstitucional e contraria o interesse público”.
Similar a Aldir Blanc, a Lei Paulo Gustavo foi criada em 2022 de forma emergencial, e agora percorre o caminho para se tornar permanente. Enfrenta, porém, os mesmos desafios. Bolsonaro chegou a adiar os repasses da Lei para 2023, e da Aldir Blanc para 2024, por meio de uma medida provisória, que foi derrubada em novembro pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Ambas, em especial a Aldir Blanc, têm a oportunidade de resgatar essa capilaridade e ampliar o acesso a incentivos para além do eixo Rio-São Paulo. Para Marina, esses já são sinais de resgate da cultura brasileira, que ainda terá um longo caminho pela frente para se recuperar frente ao apagão dos últimos quatro anos.