Por Reinaldo Glioche
É indiscutível que “Ainda Estou Aqui” é um grande filme, dotado de predicados que vão desde a magnética e delicada atuação de Fernanda Torres até à direção de arte atenta e detalhista, passando pela direção angulada e generosa de Walter Salles, pelo roteiro caprichoso e pertinente de Murilo Hauser e Heitor Lorega e toda uma composição dramatúrgica robusta e polissêmica.
São fatos que beijam o subjetivo com intensidade, o que ajuda a entender as reações que o filme – e mais especificamente seu sucesso – têm provocado Brasil afora. Na classe média, nas periferias, nas redes sociais, na elite intelectual e classe artística, “Ainda Estou Aqui” ressoa diferente e enseja debates no escopo pretendido – e raramente alcançado – pela arte.
Não faz muito tempo a jornalista Mariliz Pereira Jorge valeu-se da repercussão do filme para ponderar sobre a imposição da opinião pública sobre temas diversos. Sobre a forma de censura sofisticada que praticamos hoje, com adesão maciça daqueles que pretensamente a combatem. No vídeo “E se eu não gostar de ‘Ainda Estou Aqui’?” a jornalista exemplifica com assertividade esse limbo psicomoral em que nos enfiamos.
Essa interposição dialoga com outra opinião sobre o filme que viralizou. O influencer Chavoso da USP (Thiago Torres) disse não ter gostado do filme porque não se interessa pela realidade das periferias naquele contexto de ditadura militar no Brasil. Com a devida vênia de que o longa é baseado em um livro do escritor Marcelo Rubens Paiva sobre a experiência de sua família, o imbróglio denota uma rachadura no pensamento da esquerda, geralmente paternalista na construção imagética da realidade das periferias no audiovisual brasileiro, a respeito da edificação do longa de Walter Salles. É essa expressão, de descontentamento com a adulação ao filme, que se decupa.
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O “desabafo” do Chavoso da USP gerou um meme nas redes sociais, em que as pessoas brincavam com o fato de não ter gostado do filme por razões diversas e esdrúxulas. Por não retratar a realidades dos transexuais, por não tratar de Cuba, etc. Essa repercussão, novamente, expõe como a arte e as provocações inerentes ainda são incompreendidas no Brasil. Mas mais fundamentalmente revelam o descompasso social que vivemos. Se um filme não atende nossas expectativas ele não tem valor. Se não gostamos de um filme incensado pela opinião pública, não temos valor.
Trata-se de uma sociedade hiperbolizada que perde de vista a capacidade de empatia e cuja reflexão parece ordenada por algoritmos ideológicos que desconsideram sensibilidades tantas que compõe a arte e seus firmamentos.
“Ainda Estou Aqui”, que levará novamente o Brasil ao Oscar, torna-se, no entanto, um filme seminal por outras razões. Sua importância histórica está mais relacionada ao fato de traduzir o Brasil contemporâneo que o pulveriza, do que a qualquer outra coisa.