“Nickel Boys” aborda racismo estrutural nos EUA de maneira inovadora e intrigante

Redação Culturize-se

“Nickel Boys”, de RaMell Ross, emergiu como um dos filmes mais intrigantes do ano, gerando discussões sobre suas escolhas estilísticas ousadas, sua ressonância histórica e emocional e sua adaptação do romance vencedor do Prêmio Pulitzer de Colson Whitehead. Não à toa, o longa está na rota do Oscar 2025. Ao contar a história de dois jovens encarcerados na fictícia Nickel Academy — um reformatório baseado na real Escola Dozier para Meninos —, Ross cria um filme tão inquietante quanto inovador, combinando uma narrativa visceral com um estilo cinematográfico sem precedentes.

Ambientado no Sul segregado dos Estados Unidos durante a era Jim Crow, nos anos 1960, “Nickel Boys” acompanha Elwood Curtis (Ethan Herisse), um adolescente brilhante e idealista inspirado pelo movimento pelos direitos civis, e seu contraponto mais cínico, Turner (Brandon Wilson). Suas vidas se entrelaçam sob a sombra da Nickel Academy, uma instituição segregada onde jovens, especialmente meninos negros, enfrentam abusos indescritíveis. A narrativa alterna entre suas experiências nos anos 1960 e os anos 2010, quando as autoridades começam a descobrir covas não identificadas nos terrenos da escola, forçando um confronto com seu passado brutal.

O que distingue “Nickel Boys” de outras adaptações literárias ou dramas históricos é seu compromisso com o registro em primeira pessoa. Essa escolha estilística imerge o público diretamente nas perspectivas dos personagens, permitindo que os espectadores vivenciem os eventos como Elwood e Turner. A técnica, usada com parcimônia no cinema, aqui é empregada como um dispositivo narrativo contínuo. Os resultados são polarizadores, mas inegavelmente revolucionários, traçando paralelos com videogames e outras mídias que há muito exploram a narrativa em primeira pessoa.

No cinema, a filmagem em primeira pessoa é historicamente rara, geralmente restrita a projetos experimentais ou sequências breves nos gêneros de ação ou terror. Exemplos como o noir “Lady in the Lake” (1947), de Robert Montgomery, e o psicodélico “Enter the Void” (2009), de Gaspar Noé, exploraram a técnica com diferentes níveis de sucesso. Mais recentemente, filmes como “Hardcore Henry” (2016) buscaram imergir o público em mundos frenéticos e repletos de ação. Contudo, “Nickel Boys” se destaca ao utilizar a filmagem em primeira pessoa em um drama lento e emocionalmente envolvente. Essa escolha desafia normas cinematográficas tradicionais.

Para Ross, a perspectiva em primeira pessoa não é um mero artifício. É uma ferramenta para fomentar intimidade e empatia, aproximando o público das realidades vividas pelos personagens. Como observou a crítica Lovia Gyarkye, a abordagem “confere a ‘Nickel Boys’ uma intimidade avassaladora.” Em vez de confiar em planos gerais ou perspectivas em terceira pessoa para estabelecer o contexto, o filme foca nos detalhes que os próprios personagens poderiam notar: o toque nervoso de uma mão, as bordas desgastadas de uma camisa ou os sons ameaçadores de violência em outro cômodo. Essa atenção meticulosa aos detalhes intensifica o impacto emocional do filme, permitindo que o público sinta a atmosfera sufocante da Nickel Academy sem recorrer a representações explícitas de abuso.

Uma sequência particularmente marcante destaca essa técnica. Quando Elwood testemunha uma punição brutal, a câmera não mostra o ato em si. Em vez disso, foca em detalhes periféricos — uma Bíblia em suas mãos, uma parede rachada, o arrastar de pés nas proximidades — enquanto os sons da violência ecoam ao fundo. Essa contenção lembra a abordagem de Jonathan Glazer em “Zona de Interesse”, enfatizando o impacto psicológico e emocional da brutalidade sistêmica sem sensacionalismo. Ao evitar imagens gráficas, Ross força o público a lidar com as implicações da violência de forma mais profunda e pessoal.

Fotos: Divulgação

As linhas do tempo duais do filme amplificam ainda mais sua ressonância emocional. Nos anos 1960, acompanhamos a jornada de Elwood, de um jovem esperançoso e estudioso — criado por sua avó protetora, Hattie (Aunjanue Ellis-Taylor, em uma atuação silenciosamente poderosa) — a um sobrevivente enfrentando os horrores da Nickel Academy. Os segmentos dos anos 2010, com Daveed Diggs como um investigador desvendando o legado sombrio da instituição, servem como um lembrete sóbrio da longa sombra projetada por tais atrocidades. Essas transições temporais são tratadas com uma sutileza que recompensa espectadores pacientes, revelando gradualmente as conexões entre passado e presente.

A abordagem em primeira pessoa de Ross não está isenta de críticas. Alguns argumentam que a técnica se torna repetitiva ou distrativa ao longo dos 140 minutos de duração do filme. Peter Debruge, da Variety, descreveu a abordagem como um “experimento [que] desmorona sobre si mesmo”, enquanto Pete Hammond, do Deadline, sugeriu que ela “rapidamente passa de intrigante a irritante.” Tais críticas destacam a natureza divisiva da ambição estilística do filme. No entanto, para muitos, essa escolha ousada eleva o material, tornando-o uma experiência cinematográfica singular.

Críticos como Bilge Ebiri, da Vulture, e Richard Lawson, da Vanity Fair, elogiaram Ross por expandir os limites da adaptação literária, comparando o filme a uma obra de arte moderna. Lawson descreveu “Nickel Boys” como “o mais inventivo formalmente entre os lançamentos da temporada”, aplaudindo sua capacidade de equilibrar inovação técnica com profundidade emocional. A disposição do filme em “criar suas próprias regras e quebrá-las”, como afirmou Fionnuala Halligan, da Screen Daily, reforça seu status como uma obra ousada e arriscada.

Os paralelos entre “Nickel Boys” e videogames são particularmente notáveis. Embora Ross tenha afirmado que não joga videogames, o uso de narrativa em primeira pessoa e o foco na empatia de seu filme se alinham com tendências de jogos indie voltados para histórias. Títulos como “Gone Home” e “Firewatch” demonstraram o poder das perspectivas em primeira pessoa para explorar temas complexos, como memória, trauma e resiliência. Da mesma forma, “Nickel Boys” usa sua câmera subjetiva para colocar os espectadores nos espaços psicológicos de seus protagonistas, borrando as linhas entre experiência pessoal e percepção do público.

Eventualmente, Ross rompe com a perspectiva em primeira pessoa, utilizando planos em terceira pessoa de forma impactante. Um desses momentos, presente no pôster do filme, mostra Elwood e Turner olhando para um espelho no teto, com seus reflexos entrelaçados. Essas raras quebras na perspectiva subjetiva atuam como marcas visuais que intensificam a ressonância emocional e temática do filme.

Além de suas conquistas técnicas, “Nickel Boys” é uma acusação contundente do racismo sistêmico e da violência institucional. A fictícia Nickel Academy serve como um microcosmo de injustiças sociais mais amplas, destacando como a segregação e a exploração persistem sob o disfarce de reforma. As práticas de trabalho da escola, que efetivamente escravizam seus estudantes negros sob o pretexto de ensiná-los disciplina, traçam uma linha direta para as desigualdades econômicas e raciais que continuam a assolar a sociedade contemporânea. A descoberta de covas não identificadas na linha do tempo dos anos 2010 reforça o impacto duradouro dessas atrocidades, exigindo responsabilização e reconhecimento das vítimas.

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Apesar de seu tema pesado, o filme encontra momentos de luz e humanidade na amizade entre Elwood e Turner. O vínculo entre eles, forjado na adversidade da Nickel Academy, torna-se uma fonte de resiliência e esperança. A interpretação de Brandon Wilson como Turner oferece um contraponto fundamentado ao idealismo de Elwood, explorando de forma nuançada como indivíduos enfrentam adversidades de maneiras diferentes. Juntos, eles formam o núcleo emocional do filme, com sua jornada compartilhada ecoando muito após os créditos finais.

“Nickel Boys” tem recebido grande atenção durante a temporada de premiações, sendo apontado como um dos favoritos ao Oscar de Melhor Filme. Por meio de seu uso ousado de filmagem em primeira pessoa, convida o público a ver o mundo pelos olhos de seus personagens, promovendo uma compreensão mais profunda de suas lutas e triunfos. É um lembrete de que o cinema, em seu melhor, tem o poder de inovar, desafiar e nos mover de maneiras profundas e inesperadas. Seja celebrado ou criticado, “Nickel Boys” assegura seu lugar como um dos filmes mais comentados da temporada, uma declaração artística audaciosa que ressoa muito além da tela.

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