Redação Culturize-se
Antônio Cícero deixou marcas profundas na cultura brasileira. Seu trabalho navegou por um mar de emoções, ideias e reflexões, alinhando filosofia, poesia e música em uma trajetória única, que o consagrou como uma figura singular entre artistas e intelectuais. A união entre seu talento artístico e rigor filosófico fez com que a obra de Cícero fosse um espelho tanto de nossa modernidade quanto de nossa tradição. Suas letras de canções e poemas capturaram o espírito da época e, ao mesmo tempo, transcenderam-na, reverberando a complexidade da vida e o mistério do tempo.
Cícero nasceu no Rio de Janeiro, em 1945, em uma era repleta de transformações culturais e políticas. Desde jovem, interessou-se por filosofia, área na qual se formou e encontrou um espaço seguro para suas reflexões sobre o homem, a sociedade e o tempo. Para ele, a filosofia era uma busca constante de compreensão da existência humana e dos fenômenos contemporâneos, que iam muito além dos conceitos teóricos. Seu pensamento filosófico, contudo, não se restringiu ao mundo acadêmico: suas canções e poemas são repletos de nuances existenciais e revelam uma verdade que atinge diretamente o coração do ouvinte ou leitor. Em “O mundo desde o fim” (1995), Cícero analisa o conceito de modernidade como uma constante quebra de absolutismos históricos. Segundo ele, o moderno não é uma fase, mas um conceito.
A busca incessante de Cícero por uma arte de valor profundo levou-o a ser um defensor incansável da preservação da cultura e da memória. Para ele, a arte tinha o papel de servir como guardiã da sensibilidade humana em tempos marcados pela transformação tecnológica e social. A cultura, acreditava, deveria estar em constante diálogo com a modernidade, mas sem perder suas raízes. Na canção “Fullgás”, em parceria com sua irmã, Marina Lima, ele criou um neologismo que sintetiza o sentimento de energia e transitoriedade – ao mesmo tempo pop e poético. Suas letras, interpretadas por vozes emblemáticas da MPB, como Gal Costa, Lulu Santos e Adriana Calcanhotto, carregam um lirismo que explora os sentimentos mais profundos do ser humano.
Cícero era consciente do poder transformador da música e da poesia e foi além da leveza das palavras. Ele acreditava na profundidade e na precisão da linguagem, algo que demonstra em seu poema “Guardar”, no qual manipula o verbo com um engenho semelhante ao da poesia concreta. Sua habilidade de combinar a racionalidade da filosofia com o encantamento da poesia o tornou um mestre da palavra, um artista capaz de explorar temas universais com sensibilidade única e profunda.
Com o livro “Poesia e filosofia” (2012), Cícero delineou suas ideias sobre a diferença essencial entre essas duas formas de arte e pensamento. Ele observava que “a poesia está no poema; a filosofia está nas ideias”. Cícero defendia que a poesia possuía uma materialidade própria, enquanto a filosofia vivia em um plano superior, distante da necessidade de ser escrita para existir. Referia-se, para isso, ao exemplo de Sócrates e Pitágoras, cuja filosofia não dependia de registros, mas residia em suas almas e no discurso. Para ele, o poeta é aquele que ama as palavras, que as “curte”, como Auden disse certa vez, e não alguém que necessariamente busca nelas uma mensagem profunda.
Em 2017, Cícero foi eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL), ocupando a cadeira 27, que pertenceu a Eduardo Portella. Sua entrada na ABL foi um reconhecimento ao seu papel fundamental na cultura brasileira, uma consagração a um intelectual que soube transitar por diferentes linguagens artísticas com profundidade e sensibilidade. Em seu discurso de posse, Cícero reafirmou sua crença no poder da palavra e na necessidade da preservação da cultura. Para ele, a literatura era uma forma essencial de expressão humana, uma maneira de resistir ao esquecimento e de conferir sentido à vida.
A última fase de sua vida foi marcada pela batalha contra o Alzheimer, uma doença que o privou de suas maiores paixões: a leitura, a conversa e a memória. Ao escrever sua carta de despedida, Cícero expressou o desejo de manter sua dignidade até o fim, uma atitude que reflete a força moral que sempre caracterizou sua obra e sua vida. Em suas palavras finais, ele revelou o desejo de despedir-se do mundo com a mesma serenidade com que o viveu. Em um ato de profunda lucidez, decidiu viajar para a Suíça, onde, com dignidade, colocou um ponto final em sua história.
Um último gesto para a posteridade
Esse último gesto traz à memória a história de Ramón, protagonista de “Mar Adentro”, de Alejandro Amenábar, interpretado por Javier Bardem. Assim como Cícero, Ramón desejava o direito de decidir sobre o fim de sua vida, após um acidente que o deixou paralisado. Mais recentemente, vem do cinema de Pedro Almodóvar, outra reflexão neste sentido. Em “O Quarto ao Lado”, diagnosticada com um câncer terminal, a jornalista Martha, vivida por Tilda Swinton, decide tomar uma pílula da eutanásia. Essas são postulações sobre como encarar o inverno da vida. São, ainda, histórias que nos levam a questionar os limites da autonomia humana e a refletir sobre o significado de uma vida digna.
Antônio Cícero optou por partir antes que a doença apagasse completamente sua essência. Ele acreditava que a vida deveria ser vivida com plenitude, e, quando isso não fosse mais possível, tinha o direito de escolher seu fim. Como dizia sua canção “Último Romântico”: “Tolice é viver a vida assim sem aventura”. O poeta não se deixou levar pela passividade. Até o fim, lutou por sua autonomia e pelo direito de ser dono de sua própria história.
Em um mundo marcado pelo individualismo e pela insensibilidade, Cícero foi uma voz que exaltou a generosidade, o respeito e o amor. Ele nos ensinou que a poesia, a música e a filosofia não são apenas expressões artísticas, mas meios de transformar a realidade e de alcançar o que há de mais humano em cada um de nós. Assim, Antônio Cícero permanece como um “último romântico”, que viveu com intensidade e deixou um legado de profundidade intelectual e emocional.