Redação Culturize-se
“A Substância” (2024), de Coralie Fargeat, é uma ousada continuação de sua exploração destemida do cinema de gênero, especialmente em sua mistura de horror corporal, sátira e crítica feminista. Assim como em seu filme de estreia “Revenge” (2017), Fargeat não se afasta do gore, mas “A Substância” amplia suas preocupações temáticas sobre a objetificação do corpo feminino, o envelhecimento e os sombrios subtons dos padrões de beleza em Hollywood. Neste filme, a personagem de Demi Moore, Elisabeth Sparkle, uma estrela de Hollywood envelhecida, se torna o ponto central de uma narrativa assustadora sobre identidade, etarismo e autonomia corporal — contada através de uma lente surreal que remete ao grotesco horror corporal de David Cronenberg e à mordaz sátira de Paul Verhoeven.
Desde os primeiros momentos, “A Substância” leva os espectadores por uma jornada distorcida. Elisabeth Sparkle, outrora a queridinha da televisão, é agora dispensada por um executivo de Hollywood arrogante, Harvey (Dennis Quaid), devido à sua idade. A demissão é abertamente sexista e carrega o ar da obsessão de Hollywood com juventude e beleza. Com poucas opções, Sparkle recorre a um misterioso tratamento chamado “A Substância”, um líquido que a permite gerar uma versão mais jovem de si mesma, Sue (interpretada por Margaret Qualley), através de um processo grotesco. O detalhe? As duas devem alternar entre compartilhar o mesmo corpo, semana após semana, com uma emergindo enquanto a outra definha, escondida atrás de uma parede falsa na casa de Sparkle — uma simbólica alusão ao quadro de Dorian Gray, com Sue representando a fachada jovem e vibrante que o mundo abraça, enquanto Elisabeth é deixada para murchar nas sombras.
Através dessa premissa fantástica, Fargeat destrincha temas complexos, especialmente a fixação tóxica de Hollywood pela juventude, beleza e subjugação dos corpos femininos. As personagens de Elisabeth e Sue simbolizam duas metades da mesma luta: a primeira lutando por relevância e dignidade em um mundo que descarta mulheres após certa idade, e a segunda incorporando a energia volátil e indomada da juventude, que é constantemente valorizada, embora seja efêmera e muitas vezes superficial.
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Em uma entrevista ao The Film Stage, Fargeat comentou sobre sua abordagem única à narrativa, observando que seus filmes são “pouco movidos por diálogos” e dependem fortemente de “visuais e sons” para comunicar temas e emoções. A linguagem visual de Fargeat, combinada com um desenho de som astuto, constrói um mundo deliberadamente desconectado da realidade, intensificando a sátira do filme. Como Fargeat explica, essa técnica permite que ela crie um universo com suas próprias regras, onde imagens extremas são usadas para enfatizar o absurdo das normas sociais. Em “A Substância”, esse distanciamento do realismo é o que torna a história tanto satírica quanto surreal, levando os padrões de beleza de Hollywood ao extremo grotesco e ilógico.
O estilo de Fargeat é profundamente influenciado por sua paixão por filmes de gênero, especialmente horror, ficção científica e fantasia. Ela cita diretores como David Cronenberg e Paul Verhoeven como fundamentais na formação de sua visão criativa, apontando que o cinema de gênero sempre lhe permitiu sair da realidade e explorar temas com senso de rebeldia e criatividade. Em “A Substância”, essas influências são claras, com elementos de The Fly (Cronenberg) e RoboCop (Verhoeven) permeando o DNA do filme. Essas referências não são apenas homenagens, mas uma reinterpretação de como o horror corporal e a sátira podem ser usados para criticar as estruturas sociais modernas. Como Fargeat diz, a absurdidade das regras e estruturas sociais é exposta quando o humor e a violência colidem no cinema de gênero: “O humor é uma arma poderosa. Ele permite que você seja irreverente… para criticar o absurdo do que governa o mundo: a violência da dominação, a violência da política.”
Um dos aspectos mais marcantes da cinematografia de Fargeat é sua exploração do corpo feminino como um local de poder e vulnerabilidade. Em “A Substância”, os constantes close-ups do corpo de Sue — especialmente de suas nádegas — são mais do que simples motivos visuais; eles estão carregados de significado. Fargeat subverte o tradicional “olhar masculino” transformando essas imagens em uma crítica à forma como os corpos das mulheres são constantemente escrutinados e objetificados. Como ela observa em sua conversa com o Letterboxd, “A bunda é um símbolo muito forte de como nosso corpo não é neutro no espaço público.” O foco deliberado, quase obsessivo, no corpo de Sue fragmenta a personagem em partes, assim como a sociedade muitas vezes vê as mulheres: como pedaços desarticulados, em vez de indivíduos completos e complexos. Contudo, nas mãos de Fargeat, essas imagens desafiam essa percepção, exigindo que o público enfrente a objetificação em vez de aceitá-la passivamente.
O uso de horror corporal no longa funciona em múltiplos níveis, oferecendo tanto um prazer visceral quanto um comentário mais profundo sobre o tratamento das mulheres em Hollywood e além. Sue, nascida do corpo de Elisabeth, é uma manifestação das pressões sociais que as mulheres enfrentam para permanecerem jovens, belas e desejáveis. As grotescas transformações corporais no filme não são meramente para chocar; elas são simbólicas da misoginia internalizada e do auto-ódio que surgem de viver em uma cultura que valoriza tanto a aparência. Fargeat não se esquiva de mostrar o impacto físico e emocional que isso causa em suas personagens. As repetidas cenas de corpos em vários estágios de decomposição, transformação e mutação grotesca destacam a natureza destrutiva dessas expectativas sociais.
Um dos momentos mais chocantes do clímax do filme ocorre quando Sue, agora fundida com Elisabeth em uma entidade monstruosa conhecida como “Monstro Elisasue”, sobe ao palco para uma performance de Ano Novo. A criatura, uma amálgama visual dos corpos das duas mulheres, está longe da versão idealizada de beleza de Hollywood. Em um grotesco ato de rebelião, Elisasue regurgita um seio no palco, transformando o objeto do olhar masculino em um espetáculo horrível. Esta cena, ao mesmo tempo chocante e sombriamente cômica, exemplifica a habilidade de Fargeat de misturar humor com horror de uma maneira que força o público a enfrentar verdades desconfortáveis sobre como os corpos femininos são mercantilizados e consumidos.
Fargeat sempre foi atraída pelo arquétipo do “freak” no cinema — o outsider que é tanto temido quanto digno de pena. Em “A Substância”, o Monstro Elisasue incorpora esse arquétipo, representando não apenas a monstruosidade física criada pelas demandas de Hollywood, mas também o impacto emocional e psicológico de tentar se conformar a padrões impossíveis. A empatia de Fargeat por sua criação é evidente, já que ela retrata Elisasue não como uma vilã, mas como uma figura trágica que simplesmente quer existir e ser aceita em um mundo que a rejeita. Ao Letterboxd, Fargeat refletiu sobre a humanidade da figura freak, afirmando: “A figura do ‘freak’ fala muito sobre nossa humanidade, sobre o medo de não ser amado, o medo de ser diferente, o medo de ser julgado.”
No fundo, “A Substância” é um filme sobre rebelião — rebelião contra os padrões impossíveis de beleza impostos pela sociedade, rebelião contra a objetificação dos corpos femininos e rebelião contra as estruturas de poder que ditam quem pode ser visto e quem é descartado. Fargeat usa sátira, horror corporal e humor negro para explorar esses temas de uma forma que é ao mesmo tempo provocativa e profundamente divertida.
“A Substância” de Coralie Fargeat, é uma ousada, grotesca e sombriamente engraçada exploração das pressões colocadas sobre as mulheres para se conformarem aos padrões sociais de beleza e valor. Através de seu estilo visual distinto, sátira afiada e horror corporal visceral, Fargeat criou um filme tão desafiador quanto divertido, forçando o público a enfrentar as desconfortáveis realidades do mundo em que vivemos. Ao fazer isso, ela se consolida como uma das cineastas mais empolgantes e subversivas da atualidade.