Por Reinaldo Glioche
O cinema talvez seja o ambiente artístico mais propenso ao debate público e teses de diversas matizes surgem em filmes com propósitos diferentes. Muitos desses filmes se perdem na dialética acadêmica ou humanista, mas há produções como “A Substância”, que dispõe de uma cineasta enérgica, com visão e domínio da gramática cinematográfica. Ela pode encampar uma tese, mas não a deixa suprimir a dramaturgia.
A francesa Coralie Fargeat causou sensação em 2017 com o longa “Vingança”, um pequeno libelo feminista e volta à carga com “A Substância”, que estreou no Festival de Cannes e propõe, no escopo do cinema de gênero, uma discussão sobre a maneira como a sociedade, especialmente Hollywood, trata a mulher.
O envelhecimento como um pecado é o objeto etimológico do body horror que Fargeat constrói. Seu filme une o belo ao grotesco, remói simbologias, mesmeriza-se pelo plástico e, com rigor estético, inquieta a audiência diante do esfacelamento do status quo.
Demi Moore vive Elizabeth Sparkle, uma atriz que já gozara de grande prestígio e adoração e que está em declínio. A maneira com que Fargeat introduz essa ideia, a partir da observação do passar do tempo sobre a estrela na calçada da fama da atriz é tão genial quanto mimética.
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Quando conhecemos Elizabeth, ela está na iminência de ser demitida do programa de aeróbica que tem na TV. O produtor, um tipo troglodita vivido com a dose certa de desdém por Dennis Quaid, esbraveja: “quando chega nos 50, acaba”. Ele se refere à vida útil das mulheres. Ele quer uma nova estrela, gostosa, durinha e que fixe os americanos em frente à TV.
É nesse contexto de crise de imagem e autoestima que Elizabeth é apresentada a um tratamento experimental e ilegal que promete “uma versão melhor” dela mesma. A tal substância do título.
Hesitante, mas ao mesmo tempo entregue as suas inseguranças, ela inicia o tratamento. A nova versão, mais jovem, emerge de dentro de Elizabeth a rasgando como “Aliens” ou “Invasores de Corpos”. As referências, aliás, tornam a experiência de se assistir ao filme, mais robusta. De Ridley Scott à David Lynch, passando por David Cronenberg e Stanley Kubrick, por vezes citado abertamente.
Elizabeth e sua versão mais jovem, vivida por Margaret Qualley, precisam coexistir. A cada sete dias, sem exceção, uma precisa dar lugar a outra. Esse equilíbrio é necessário para estabilização, já que as doses que mantém “o outro eu” de Elizabeth, batizada de Sue, vem da medula da “matriz”.
Entramos no campo dos transtornos dissociativos. Embora sejam uma só, como a voz ao telefone – o elo de Elizabeth com a empresa que conduz o experimento reiteradamente expõe -, cada vez mais elas se afastam do cerne do que essencialmente é, ou era, Elizabeth.
O corrompimento do espírito, da psique, é o elemento que move o terceiro ato do longa, que escala em um espetáculo grotesco em que Fargeat dá contornos visuais a elocubrações existenciais.
Dando viço ao argumento
A nudez surge contemplativa aqui. Os corpos são expressões do self, veículos dignificantes e destrutivos. São cascas frágeis à mercê das imposições sociais. Fargeat busca enquadramentos inortodoxos para ressaltar a estranheza, impele a audiência a um eletro dance ruidoso para dimensionar a dopamina frenética de Sue e se entrega à paleta acinzentada com cores frias de quando Elizabeth é trazida de volta a uma vida cada vez mais sem sentido e que, eventualmente, começa a lhe ser ainda mais drenada.
Muito se diz sobre tal ator ou atriz ser o acertado para um papel e essa lógica pode ser aplicada a Demi Moore aqui. O recall da audiência de suas atuações em filmes muito celebrados dos anos 90 em que seu corpo era atrativo, casos de “Assédio Sexual” (1994), “Striptease” (1996), entre outros, serve à conjuntura narrativa e à interlocução afetiva que sua personagem mantém com a audiência. Moore permite que Fargeat percorra seu corpo com um senso de urgência singular.
A fisicalidade da performance de Moore chama atenção, assim como seu despudor, mas é sua vulnerabilidade como mulher, como mulher em Hollywood, que torna tudo mais envolvente. A voltagem emocional alimenta-se desse choque, desse crepúsculo imagético. É uma atuação concatenada em pesos e contrapesos que vai de silêncios contemplativos a uivos, de solos em frente ao espelho a histerismos sob pesada maquiagem. É um tour de force de uma atriz que experimenta um memorando de seu talento e história no cinema.
Qualley, uma atriz que caminha a passos largos para o tipo de estrelato de Elizabeth Sparkle, ecoa o tipo doll com afinco e desenvoltura. Sua atuação é o perfeito Yang para o Ying de Moore, o que reforça a excelente direção de atores de Fargeat e espelha o grande conflito de “A Substância”, um filme potente e corajoso na maneira com que articula uma ideia que já está posta, mas que sob a lente de Fargeat sai do lugar comum.