Crises entre os poderes são naturais em uma democracia, mas o STF talvez viva sua fase mais reestruturante desde a promulgação da Constituição, da qual é guardião, em 1988
Por Mayra Couto
Há 10 anos você não ouvia ou lia tanto falar sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). A suprema corte, que representa a última instância do poder judiciário, é responsável por fiscalizar e assegurar o cumprimento da Constituição Federal Brasileira de 1988. Na prática, hoje ela tem suas sessões públicas televisionadas, ministros, que são quase considerados celebridades, decisões e contrapontos sobre alguns casos famosos e até discussão do voto secreto. Afinal, é real o ativismo judicial da corte? Quem deve substituir Rosa Weber, que aposentou-se há algumas semanas? Quais devem ser os próximos passos do STF a curto e longo prazo?
Você pode se questionar, o que de fato cabe ao STF? O Supremo Tribunal Federal analisa em última instância a constitucionalidade das leis. A instituição tem o poder de declarar uma lei inconstitucional ou não. Ou seja, o poder legislativo, tem como uma das principais funções criar leis; o poder executivo, tem como função principal cuidar da cidade, estado país e administrar os serviços públicos; e o judiciário, tem a função de julgar as questões que são colocadas, e tem um poder mais técnico.
Os ministros do STF são indicados pelo presidente. “No Brasil, hoje, um ministro depois que assume pode ficar até os 75 anos no cargo. Essa idade mudou há 10 anos, antes os ministros ficavam até os 70 anos”, explica Hugo Melo, juiz do trabalho, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), mestre e doutor em ciências políticas. Provavelmente, você já ouviu ou leu em coberturas políticas, quando se fala em fontes internas não identificadas em Brasília, e os comentários por lá, são que essa mudança na idade foi feita durante o governo Dilma para evitar que ela indicasse um novo ministro no seu mandato.
Inclusive, Dilma foi quem indicou a, agora, ex-ministra Rosa Weber e existe toda uma especulação entre os juristas da área e outras fontes de Brasília sobre quem ocupará o cargo. Alguns nomes surgiram como fortes, mas também tem outras discussões que são levantadas.
Geralmente, depois da indicação do presidente, esse nome precisa passar pela aprovação do senado. “O indicado é sabatinado e depois vai para voto no senado. Não houve na história nenhum outro episódio de rejeição de indicação pelo supremo, além de quando Floriano Peixoto, no final do século XIX, nomeou um médico com a intenção de afrontar o supremo, o Barata Ribeiro. Ele atuou por uns meses e depois o senado rejeitou”, explica Hugo.
Contudo, não é assim em todos os países. “Os Estados Unidos, por exemplo, já teve vários casos de rejeição. E só parou de ter rejeição nos EUA porque o senado já avisa que alguns nomes não vão passar. Aqui, geralmente acaba sendo uma escolha do presidente, que geralmente tem maioria no congresso”, comenta Hugo.
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Vitaliciedade em xeque
A vitaliciedade do mandato de um ministro do STF recentemente começou a ser alvo de questionamentos. “Vi o presidente do senado, falando em estabelecer mandatos para ministros do supremo. Isso existe em alguns lugares. Hoje, ele fica até os 75 anos, a não ser que queira se aposentar, ou em casos de morte. Eu, particularmente, acho uma coisa boa para o supremo. Em outros países existe o mandato de 8 anos”, observa o jurista.
Sobre os nomes que estão sendo ventilados hoje em Brasília para possíveis novos ministros fala-se muito em Flávio Dino, atual Ministro da Justiça, além dele outros nomes citados foram Jorge Messias, Advogado Geral da União, Bruno Dantas, presidente do Tribunal de Contas da União (TCU). Contudo, também outros questionamentos estão sendo levantados, por exemplo, com a saída da Rosa, só resta Cármen Lúcia de mulher na corte. Na história, o STF só teve 3 ministras mulheres, Ellen Grace, indicada por Fernando Henrique Cardoso, Cármen Lúcia indicada por Lula e Rosa Weber pela Dilma.
Entre os outros nomes cotados, segundo fonte que preferiu não se identificar: “Especula-se sobre uma mulher negra para assumir, Soraya Mendes, ou Vera Lúcia Santana. E um dos nomes mais recentes foi o de Antonella Galindo, Vice-Diretora da Faculdade de Direito do Recife. Também foi citado o nome da atual presidente da Funai, Joenia Wapichana. Contudo, dizem que Lula quer uma pessoa de sua confiança direta para tocar os problemas atuais. Por isso, o nome do Dino é um dos mais fortes. Mas, diante desses questionamentos, também se fala em o presidente indicar uma mulher como Ministra da Justiça – seria a primeira vez de uma mulher neste cargo”.
Inclusive, Antonella Galindo, jurista, professora de direito constitucional e vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife (UFPE), comentou sobre as repercussões em cima do seu nome: “É uma escolha do presidente. Eu fico muito feliz com a ventilação do meu nome. Vi que criaram um perfil no Instagram, Antonella no STF. Claro, que depois disso, tenho conversado com muitas pessoas, mas também vejo isso com muita tranquilidade. Os critérios, serão próprios do presidente Lula. Eu não tenho acesso direto a ele. Não sei em que ponto está. No caso das pessoas que levantaram meu nome, falaram da representatividade como um plus. Hoje são 9 ministros homens e 2 mulheres, e 1, a Rosa, acabou de se aposentar. Importante manter essa representatividade feminina”.
A postulante à vaga de Rosa, entretanto, pondera. “Por outro lado, também tivemos aí os movimentos identitários dos juristas LGBT, surgiu uma campanha nas redes sociais, da necessidade de ser uma mulher negra também, porque até hoje no STF tiveram apenas 3 mulheres, brancas, cis genêros, heteros. Então, talvez seja um início de direitos e representatividade para a população negra e LGBTQIAP+. Sou uma mulher trans, jurista. Penso que é um debate importante. Porque pelo 14° ano seguido somos o país que mais mata a população LGBTQIAP+. Na Alemanha, temos um tribunal com equiparidade de gênero, são 8 mulheres e 8 homens. Nos EUA também, enquanto no Brasil, agora só temos homens cis e uma mulher. Acho que o presidente deveria pensar sobre isso com carinho. Eu já me sentiria muito contemplada se fosse uma mulher, melhor ainda se fosse de uma minoria”.
Ah, o ativismo…
Contudo, esses holofotes virados para o STF não começaram de agora e alguns pesquisadores acreditam que pode ter ligação com a criação da TV Justiça, há mais de 20 anos. “A TV Justiça surgiu durante a presidência do ex-ministro, Marco Aurélio Mello. Foi criada uma espetacularização das sessões. Os ministros sabem que é transmitido ao vivo. Já vi várias sessões antes e depois da criação da TV Justiça, e hoje, de fato, é mais espetacularizada. E isso não é só no judiciário, até a vida particular dos ministros virou espetáculo nas redes sociais”, comenta Hugo.
Essa espetacularização faz com que os ministros assumam protagonismos indevidos: “Alguns ministros do STF acabam sendo celebridades. Ao virar celebridades, algumas coisas não são aceitáveis no campo judiciário. O ideal é focar no que está sendo falado nos autos, respeitando as funções. Uma vida um pouco mais discreta e sóbria. Diferente do legislativo e do executivo, que precisam da mídia porque precisam se reeleger, os ministros do STF não precisam”, comenta a jurista Antonella.
No entanto, ambos também ressaltam que esse protagonismo, considerado por alguns de ativismo judicial, está ligado à falta de comunicação dos poderes e, ressaltam, que se o STF está entrando em tantos casos é porque está sendo acionado para isso. “Com o neoliberalismo o estado vai se afastando de atuar em determinados setores e os resultados são que essas exonerações vão cair para o judiciário. Então, todos os temas acabaram terminando no judiciário porque não estavam conseguindo internamente uma solução. Esses fatores culminaram no protagonismo do poder judiciário. Além disso, há uma alteração de cunho estrutural, no neoliberalismo, quando o estado deixa de entregar algumas coisas para a sociedade, o judiciário entra para garantir esses direitos”, explica Hugo.
“Quando a gente fala da influência política da corte, a gente não pode ter ilusão. A separação de poder da ideia de que eles são separados, como se fossem isolados. Mas existe um sistema de freios e contrapesos, e na democracia nenhum poder é absoluto. Esses poderes devem estar harmônicos. Por exemplo, o legislativo, não deve julgar nem governar; STF, não deve fazer as leis, nem substituir o governo. Mas as decisões de um tem impacto no outro. Por outro lado, quando o judiciário interpreta essas leis, não deve ter a extrapolação desses poderes. Às vezes, chamam de ativismo simplesmente porque não gostaram da decisão do supremo. No caso de Lula mesmo, não foi ativista. Uma coisa é que o supremo não interpretou bem uma lei, outra coisa é o supremo invadir uma área de outro poder”, comenta Antonella.
O caso citado refere-se à prisão do presidente Lula em 2018. O caso estava previsto na constituição, a prisão em segunda instância é proibida, até que o STF reviu o caso. “Ou seja, isso estava previsto na constituição. Não cabe ao supremo interpretar. Por isso, foi uma prisão indevida de 555 dias. Esse é o exemplo mais emblemático e mais famoso. Existem muitas controvérsias sobre a ausência de provas nesse caso, inclusive, li as sentenças”, diz Antonella.
A jurista também comenta momentos em que o STF agiu bem: “O supremo foi muito bem na questão da Covid e também no caso do 8 de janeiro de 2023. Precisamos observar bem o que é a função de cada poder”, reitera.
E agora?
Quando se fala em próximos passos a curto e longo prazo, um dos pontos altos levantados pelos especialistas é a comunicação. “Quando o supremo entra exageradamente no que diz respeito a outros poderes, eles precisam ter cautela, mas isso faz parte do jogo político. Não faz sentido essa medida de submeter ao congresso as decisões do supremo, isso daria ao congresso poder de extrapolar sua função. Sou muito entusiasta do diálogo para solucionar. E o diálogo precisa acontecer de mão dupla, uma disposição para resolver o problema e não impor sua visão ao outro. Aposto nisso, como a solução para esse problema, e ser um sistema de fato de freio e contra freio, para nenhum poder ser superior ao outro. Esse equilíbrio é importante para a democracia funcionar bem”, comenta Antonella.
“O STF avançou bastante no ponto de vista de questões dos direitos civis e politicos, como injúria racial, injúria, casamento homoafetivo, aborto de anencefalo, foi pautada recentemente sobre aborto e algumas drogas. A atuação do supremo nessas vertentes teve avanço significativo. Porém, na minha visão, retrocedeu quanto aos direitos sociais, como direitos trabalhistas, previdenciários, as decisões têm sido terríveis. Quase todas prejudicaram os trabalhadores brasileiros. E eu não vejo como isso possa ser alterado a curto prazo. Mesmo que entre dois ministros progressistas, ainda serão minorias. Então, minha expectativa continua baixa quanto aos direitos sociais”, afirma Hugo.
Além disso, Antonella também chama atenção para a reestruturação da instituição para conquistar maior respeito e aceitação: “Neste momento, penso que a prioridade é a reestruturação das instituições no geral. Quando tivermos maior estabilidade institucional, podemos debater mais outras questões. Porque o STF também deve estar comprometido com a justiça social. A constituição é social democrata, qualquer interpretação dada precisa ser considerada os dois lados da moeda. O STF precisa antes de tudo ser uma instituição respeitada, menos midiatizada, e passar mais sobriedade. Agindo como intérpretes da constituição, considerando o que está ali. O supremo caminharia para um melhor lugar e, com toda certeza, merece o respeito institucional, que é necessário”.
Outra polêmica recente que surgiu em relação ao STF foi a questão do voto secreto dos ministros. “Acho que as sessões públicas são mais apropriadas porque tudo fica mais transparente e democrático. Mas registro que não é assim em todos os lugares e também funciona. Acho que seria muito ruim pro país aderir ao voto secreto. E acredito que não tem nenhuma possibilidade de acontecer”, comenta Hugo.