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Os herdeiros de Zé Celso

Legado do artista que “transcendeu” em 2023 segue vivo no Teatro Oficina e em outros grupos que mantêm acesa a chama inconformista de Zé Celso

Por Mayra Couto

Zé Celso
Foto: Reprodução/Instagram

Anarquia e a vanguarda, que fizeram do Teatro Oficina um marco da Tropicália, estão presentes até hoje no espaço que respira e vive de arte. Quem entra no Teatro Oficina Uzyna Uzona é impactado por algo, que com certeza nunca viu antes. Uma arquitetura marcante, assinada por Lina Bo Bardi, eleita em 2015 como a melhor arquitetura de teatro do mundo pelo “The Observer”. Contudo, mais do que isso, como afirmou a atriz Silvia Prado, há 25 anos na companhia: “Cada pedacinho desse espaço tem um pouco do Zé”. O Grupo Oficina carrega consigo uma arte que traz críticas, que busca mobilização social, quebra de preconceitos culturais e hoje tem como missão continuar o legado de Zé Celso, que marcou a forma de fazer teatro no Brasil e é uma das figuras icônicas quando se fala do Movimento de Teatro de Grupos. 

A carreira de Zé Celso foi marcada por transgressão, reinvenção e impacto. Entre os prêmios que colecionou ao longo de sua trajetória, dois foram pela sua direção intensa em Hamlet. Além disso, obras como “Bacantes”, que ficou conhecida como uma das mais marcantes de sua carreira; e “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que contava com 5 horas de duração do espetáculo, marcaram não só o Zé, como quem teve o privilégio de assistir.

O Grupo do Teatro Oficina nasceu no fim da década de 50 do seguinte desejo do ator e diretor: “Queria quebrar os clichês. Tirar do corpo aquele vodu, de pequeno burguês de terno, gravata e etc…”, foi o que explicou Zé Celso em entrevista ao Projeto Produção Cultural do Brasil.

Hoje o grupo do Teatro Oficina segue ativo, mesmo sem patrocínio desde 2016, e com o objetivo de continuar levando a herança de arte e o legado do Zé a frente. Logo no ínicio de um dos atuais espetáculos em cartaz, o “Rasga Coração”, que passa pela obra de Villa Lobos, e tem direção de Roderick Himeros e Marcelo Drummond, com direção musical de Felipe Botelho, mostra em vídeos a presença do Zé Celso naquele espaço, que tem ligação desde a infância com a obra do Villa Lobos.

“Ontem eu lembrei de uma história que o Zé contou, que o pai dele colocava As Bachianas para ele ouvir pra dormir. Esse processo do Villa é muito importante, porque é uma música que também transforma a gente. Aquela fala que dou no final da peça é bem especial, em que a música é uma das primeiras artes que tem um poder de perfurar o outro e tomar conta do seu corpo. A música faz com que você amplie sua escuta em um mundo cheio de ruídos e poluição sonora”, comenta a atriz Silvia Prado. 

Como em todo espetáculo do Teatro Oficina Uzyna Uzona, “Rasga Coração” carrega várias críticas e questionamentos que fazem refletir. Na peça a personagem da Silvia fala no final: “Tudo o que se sente na vida, sente no coração e muita gente se esquece disso. Justamente do que mais precisa a humanidade. Se o coração estivesse no centro da terra, talvez estivéssemos mais perto da paz”. Não à toa, Prado revela a opinião de Zé Celso sobre o espetáculo: “O Zé tinha razão, o Rasga é um dos espetáculos mais bonitos, porque ele é coração. Ele sempre dizia: ‘tá tudo bem, mas liga no seu coração”, conta.

Inclusive, nesse espetáculo, o grupo resgata um detalhe importante de uma cena de Hamlet dirigida por Zé Celso. Para se conectar, em uma parte do espetáculo, o coro coloca uma mão no peito do outro, para sentir uma ligação pelo batimento cardíaco.

Leia também: Zé Celso e sua salada antropofágica moldam “Máquina do Desejo”

Próximos passos

Antes de transcender, como os integrantes do grupo do Teatro Oficina preferem se referir, Zé Celso trabalhava em um novo projeto, a peça “A Queda do Céu”, uma montagem complexa que envolve artistas indígenas e que ainda não tem patrocínio.

“A parte da dramaturgia precisa ser concluída, é baseada no texto escrito pelo David Kopenawa, um xamã, denunciando a situação que passou e vive o povo Yanomami. Então, trata-se de uma denúncia do efeito nefasto do garimpo e explica a luta desse povo. O manuscrito foi publicado em 2010. Eu ainda não domino a fonética Yanomami e um dos meus objetivos é ir até lá para aprender mais sobre o povo. Quero vivenciar essa cultura”, comenta o ator e diretor Roderick Himeros, que há 14 anos trabalha na Associação de Teatro Oficina Ozyna Uzuna, seria co-diretor desse espetáculo com o Zé, e agora assume o projeto.

Devido à urgência do tema, Roderick conta que Zé Celso tinha pressa em montar e estrear esse espetáculo: “O Zé trabalhou até o último instante de consciência dele, tinha acabado de fazer a correção da segunda versão da co-criação teatral. Ele estava muito entusiasmado. O objetivo desta encenação é divulgar e propagar a palavra do xamã e como o capitalismo criou essas feridas. O Zé queria encenar o espetáculo ainda esse ano”.

Para dar continuidade a esse novo espetáculo, o Teatro Oficina espera conseguir apoios e patrocínios para montar com a urgência que o tema pede. Segundo Roderick, para o Zé Celso essa peça precisava voltar a atenção para os atores, texto e encenação: “Zé sempre falou que imaginou para esse projeto uma estética mais minimalista, sem grandes efeitos”.

Para quem quer ajudar e incentivar a arte produzida pelo Grupo Oficina, no site deles tem a opção de você financiar mensalmente, diferentes valores, para ajudar nos custos do Teatro Oficina Ozyna Uzuna. Além disso, no site também tem a opção de você destinar 6% do Imposto de Renda e abater da sua declaração, essa opção está dentro da Lei de Incentivo à Cultura.

Parque do Rio Bixiga Zé Celso

Mas o legado e a herança de Zé Celso é bem mais ampla. Um dos maiores desejos e lutas do ator e diretor era a criação de um parque ao lado do Teatro Oficina Uzyna Uzona, esse parque interligado ao teatro já estava presente na planta do projeto arquitetônico, desde sua concepção, contudo o projeto está embargado há anos. A área pertence ao Grupo Silvio Santos.

O projeto, hoje intitulado, Parque do Rio Bixiga Zé Celso, conta com ação ecológica, cultural, integrada com o teatro. Além disso, é visto pelo Grupo Oficina e por moradores e outros apoiadores, como possibilidade de responder às condições climáticas atuais. “A região do Bixiga é uma das com menor cobertura vegetal, por isso vemos uma concentração de calor na cidade. O parque seria uma opção coletiva. Há um projeto de lei tramitando na Câmara Municipal de São Paulo com uma boa adesão de diferentes parlamentares. Nesse momento, é importante que a prefeitura olhe para o parque. Esse terreno hoje é uma área desocupada. E o esforço de orçamento para transformar em parque é muito baixo. É um investimento em meio ambiente, saúde e cultura”, comenta André Luzzi, que atua no Fórum Paulista de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e integra o movimento pelo Parque do Rio Bixiga Zé Celso.

André acompanha de perto a mobilização para transformar o sonho de Zé Celso em realidade: “A comunidade do entorno está bem mobilizada, temos um conselho com pessoas públicas e anônimas, que juntos fizemos várias ações. Nós acreditamos que já somos parque, agora falta a formalidade dele ser aberto ao público. Alguns esforços também estão sendo feitos para sensibilizar a família Abravanel, para que possam abrir mão desse espaço, dentro do que a legislação possibilita de troca de terrenos para que a empresa mantenha seus negócios em outra localidade. O plano de ação climática do Estado de São Paulo prevê a necessidade de áreas permeáveis, como o parque”, comenta.

Herança compartilhada

Zé Celso é um dos percussores do movimento do Teatro de Grupos no Brasil, sua primeira peça foi montada em 1958 e logo na sequência ele criou o Grupo Oficina, revolucionando o teatro nacional.

Hoje, não são só os atores do Grupo Oficina que levam um pouco do legado do Zé Celso Brasil afora. Mas todos os grupos que vieram depois e que continuam fazendo teatro, mesmo sem grandes patrocínios e apoio, levando arte e cultura para as pessoas. Por isso, fomos atrás de alguns grupos, um recorte entre São Paulo e Recife, que seguem vivendo e fazendo arte, muitas vezes de forma independente.

ShakeCena

O ShakeCena é um grupo especializado em espetáculos e workshops das Obras de William Shakespeare e tem 7 anos de trajetória. Criado pela atriz e diretora Eliete Cigaarini, que também teve sua formação artística em grupos de teatro.

O grupo ShakeCena | Foto: Reprodução/Instagram

“O desejo de criar uma companhia de teatro já era latente porque eu comecei minha vida artística no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), do Antunes Filho, e lá fundamos o grupo de Teatro Boi Voador, que tem 10 anos de existência. Então, por isso, também tive vontade de criar a minha Companhia de Pesquisa Teatral em 2016, após anos de estudos e pesquisas sobre Shakespeare”, comenta a fundadora do ShakeCena.

A grande missão da Companhia é desmistificar os textos de Shakespeare e tirá-los do lugar erudito, porque, na verdade, o autor tinha como objetivo fazer um teatro popular. Então, o ShakeCena propõe aproximar o público dessas obras atemporais. “Nosso maior compromisso é explodir as comédias, para que as pessoas realmente se divirtam com as histórias, e contar as tragédias da maneira mais humana possível para que o público brasileiro se identifique.  Ao todo, queremos estudar e encenar as 39 peças de Shakespeare, o objetivo é ser o principal grupo especializado em obras do autor. Nós já encenamos e estudamos 14 peças, 11 comédias e 3 tragédias, fora outras versões online que montamos na época da pandemia”, comenta Eliete.

O principal desafio da companhia em relação a apoio e patrocínio é a concorrência. “Porque dependemos mais de editais do que de patrocínios, atualmente. Quando montei a companhia, não foquei nisso do patrocínio. Estamos caminhando para entrar em editais, de incentivo e fomento”, conta Eliete.

Atualmente a ShakeCena está rodando São Paulo com a peça “Noite de Reis” e uma temporada da sua última montagem, “A Tempestade”, prevista para o mês de outubro em cartaz na sua sede, no Teatro Garagem. Além disso, também conta com um projeto de estudo e montagem de “Hamlet”, previsto para estrear no início de dezembro.

Satyros

O Grupo de Teatro Satyros foi fundado pelo diretor Rodolfo Garcia Vásquez e por Ivan Cabral em 1989. Na época, o Rodolfo trabalhava em um grupo de teatro e o Ivan estava chegando de Curitiba em São Paulo. E ambos queriam fundar uma companhia com um novo jeito de fazer teatro. “Nosso principal objetivo é trocar com a cidade e com outros artistas, que são ponto de troca e parceria. Produzir e levar cultura e arte para as pessoas”, comenta Rodolfo.

O Grupo Satyros | Foto: Divulgação

Ao todo, Satyros somam mais de 100 espetáculos teatrais no Brasil e no exterior, o grupo já se apresentou em mais de 30 países. E já formou mais de 200 turmas de teatro em sua sede, em São Paulo.

Por sempre abordar em suas obras temas críticos e políticos, a dificuldade por patrocínio existe. “Muitas vezes temos dificuldade de encontrar parceria com empresas privadas. Então, isso dificulta um pouco uma certa continuidade do nosso trabalho. A gente sempre tenta encontrar parcerias que respeitem a nossa integridade de pensamento e isso nem sempre é fácil”, explica o fundador Rodolfo.

Entre os próximos passos do grupo Satyros estão projetos na área audiovisual, mantendo também os projetos no teatro, uma montagem de “As Bruxas de Salém” está em cartaz. A sede do grupo, na Praça Roosevelt, conta com uma sala de teatro e uma de cinema. “O braço audiovisual será um dos nossos focos nos próximos anos”, afirma Rodolfo.

Cênicas Cia de Repertório

O Cênicas Cia de Repertório é um dos grupos em destaque no teatro pernambucano. Fundado em 2001, pelos atores Antônio Rodrigues e Sônia Carvalho, já somam 16 montagens. Após conquistarem sua sede em 2010 no Recife Antigo, região histórica da cidade pernambucana, também veio a necessidade de compartilhar todo o conhecimento que eles adquiriram ao longo dos anos, criando cursos, oficinas e workshops para trocas artísticas. Ao todo, já são 13 turmas formadas nos cursos do Cênicas.

O grupo de teatro formado por artistas independentes que acreditam na pesquisa e no teatro que fazem e que tentam resistir e existir, fora do eixo São Paulo-Rio, na cena pernambucana. “É muito importante que os grupos que estão na labuta fazendo arte, buscando desenvolver suas pesquisas e linguagens estéticas, sejam reconhecidos, fomentados e patrocinados, por iniciativas públicas e privadas. Porque a arte precisa ser compreendida como uma ferramenta de transformação do ser humano”, afirma Toni Rodrigues, ator, diretor e um dos fundadores do Cênicas.

O grupo Cênicas Cia de Repertório | Foto: Reprodução/Instagram

O diretor e ator também compartilha um pouco mais a fundo dos desafios encontrados no dia a dia para continuar com o Cênicas: “São inúmeras as dificuldades que encontramos para poder resistir fazendo arte aqui em Pernambuco. A principal, é a escassez de políticas públicas voltadas para subsistência dos grupos de teatro e para manutenção dos espaços culturais independentes que são fomentados por esses artistas, onde geralmente em sua grande maioria não há nenhum incentivo público e privado. E nem políticas de isenção de impostos. Precisamos de políticas públicas que enxerguem o artista na sua completude e encare a arte como bem necessário. Outro ponto, é a escassez de pautas nos grandes teatros. Teatros fechados, enquanto os artistas ficam sem datas para fazer temporadas regulares na cidade do Recife. Por exemplo, outubro é o mês das crianças, nossa peça infantil foi recentemente premiada e ainda não encontramos um teatro disponível para apresentar”, comenta Toni Rodrigues.

Teatro Agridoce

O Coletivo de Dança-Teatro Agridoce nasceu do olhar sensível dos 4 integrantes, Aurora Jamelo, Flávio Moraes, Nilo Pedrosa e Sophia William,em 2018. Os amigos encontram a vontade em comum de acolher e construir novos argumentos afetivos, escolhendo levar para a cena assuntos invisibilizados ou marginalizados pela sociedade, levantando questionamentos necessários através de uma “arte política” e disruptiva.

Ao todo, o coletivo já realizou dois espetáculos de Dança-Teatro, “Trans(passar)” e “Mar Fechado”; três curta-metragens, “Mar Fechado”, “TU BARÃO” e “RHIZOPHORA”; um média-metragem, “Incendiárias, Filhas do Fogo”; e um festival, o Janeiro Sem Censura. “Agora estamos nos preparando para estrear nosso novo espetáculo que aborda o romance de Rosa e Joaquim, que através de encontros e desencontros, romances e possibilidades, sonhos, ilusões e uma única lembrança deixada em forma de uma carta”, conta a multiartista, performer, poetisa, roteirista, preparadora de elenco, arte-educadora, produtora cultural e integrante do Teatro Agridoce Sophia Wiliam.

Grupo Teatro Agridoce | Foto: Tainá Lemos

Ainda sobre esse projeto, Flávio Moraes ator, sonoplasta, cenógrafo, produtor cultural e também integrante do Teatro Agridoce reflete: “Este trabalho tem o intuito de abordar o amor possível, um amor que não precise viver em medo e culpa, para que se entenda que essa história é uma história nossa, que os sonhos também são nossos e que o amor para minorias também pode se apresentar em formas leves e doces e que ele pode ter um final feliz”.

Os integrantes também compartilharam as dificuldades enfrentadas em continuar como um grupo de teatro, independente, sem patrocínio e sem incentivos públicos. “É ter que encarar a dura realidade de que vivemos em uma sociedade onde arte ainda não é valorizada”, lamenta Sophia William.

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