Search
Close this search box.

A força intelectual de Domenico De Masi

Por Rodrigo Augusto Prando*

Perdemos, em 9 de setembro, o sociólogo italiano Domenico de Masi, aos 85 anos. Aqui, penso eu, para ele, seus familiares, amigos, alunos e leitores, deve importar menos os dias finais e sim toda uma vida dedicada ao estudo de um fenômeno fundamental da sociedade: o trabalho. Mais do que isso, que De Masi tenha sido – creio que foi – coerente com seus estudos e tenha desfrutado do ócio criativo.

Dedicado ao campo da Sociologia do Trabalho, De Masi produziu uma relevante obra a partir de suas pesquisas empíricas e estatísticas que desenvolveu como docente e pesquisador da Universidade La Sapienza, de Roma, bem como diretor da S3-Studium, a escola de especialização em ciências organizacionais que ele fundou. Além disso, suas ideias ganharam força no mundo todo a partir de seus livros, palestras, cursos e entrevistas. De Masi gostava, especialmente, do Brasil e aqui esteve inúmeras vezes.

Mariana Serena Palieri conduziu uma longa entrevista com De Masi que se transformou no livro “O ócio criativo”, publicado no Brasil pela Editora Sextante. Em sua apresentação da obra, Palieri afirma que ao se “observar o professor, ele simplesmente passou do frenético ao humano. Sobretudo porque, como sociólogo, que estuda a organização social do trabalho, ele ‘otimizou’ as condições logísticas. O edifício no qual mora e trabalha se tornou seu quartel-general. No quinto andar, encontra-se sua casa: é alugada, mas tem uma vista sobre os telhados mais lindos de Roma, e o fato de ficar muito perto de algumas igrejas que possuem quadros de Caravaggio, Rafael e Michelangelo, além da proximidade com palácios onde se encontram obras de Vasari e dos Carracci, faz ele se sentir ‘um colecionador milionário’”, como diz.

Domenico De Masi
O sociólogo Domenico De Masi | Foto: Divulgação

A aguçada percepção de Palieri captou o essencial: o professor e pesquisador conseguiu, em sua carreira, morar em um prédio que, andares logo abaixo, ficava sua escola, a S3-Studium. Fora que, morando em Roma, respirava arte e cultura. Trabalho conjugado à contemplação que, criativamente, ajudava e reforçava suas ideias.

Segundo o próprio De Masi, suas pesquisas na Itália (anos 1970 e 1980) confirmavam as investigações de outros sociólogos que aprendiam mudanças profundas: de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial, de um enorme volume de operários para trabalhadores de “colarinhos brancos” e da formação de um conjunto de trabalhadores ocupados no setor de serviços.

Assim, os dados coligidos nas pesquisas o levaram a compreender que o trabalho, doravante, teria conexão direta com a tecnologia e, consequentemente, o avanço tecnológico nos levaria a menos horas trabalhadas com mais eficiência, ou seja, teríamos mais tempo livre e fora das indústrias e escritórios. Obviamente, a leitura feita por De Masi não poderia ser generalizada para o mundo todo, já que a temporalidade histórica fazia – e faz – com que em um mesmo país ou região tenham economias avançadas com ganhos sociais e, em outras situações, atraso, miséria e desigualdades de toda sorte.

Leia também: Inteligência Artificial apresenta riscos a artistas e outras profissões?

Nas palavras de De Masi, elucidando suas ideias, afirmou que “estamos caminhando em direção a uma sociedade fundada não mais no trabalho, mas no tempo vago”. Para ele, portanto, o chamado ócio criativo estaria alicerçado sobre o trabalho, estudo e jogo (lazer). Neste sentido, o importante da “atividade criativa é que ela praticamente não se distingue do jogo e do aprendizado, ficando cada vez mais difícil separar essas três dimensões que antes, em nossa vida, tinham sido separadas de uma maneira clara e artificial. Quando trabalho, estudo e jogo coincidem, estamos diante daquela síntese exaltante que eu chamo de ‘ócio criativo’”.

Haveria, na perspectiva do sociólogo italiano, uma tríplice passagem da espécie humana. Sairíamos da atividade física para a atividade intelectual, da intelectual de tipo repetitiva às atividades intelectuais criativas. Quando, no bojo da pandemia da Covid-19, enfrentamos distintos tipos de distanciamento social, muitos de nós, cujo trabalho é predominantemente intelectual, assumimos um modelo de home office. O vírus nos colocou em uma casa que, novamente, teria que ser espaço de trabalho, de estudo e de lazer. Foi neste período (2020-2022) que, escrevendo acerca do cenário pandêmico, retomei à leitura de “O ócio criativo” (Sextante, 2000) e, recentemente, de “O trabalho no século XXI: fadiga, ócio e criatividade na sociedade pós-industrial” (Sextante, 2022).

No livro “O trabalho no século XXI”, De Masi nos oferta uma obra que consolida os estudos de uma vida, já que são quase mil páginas, divididas em cinco partes: 1) o que é trabalho; 2) o trabalho na sociedade pré-industrial; 3) o trabalho na sociedade industrial; 4) o trabalho na sociedade pós-industrial; e 5) caminhando para um novo paradigma do trabalho – em um total de 31 capítulos e, à guisa de finalização, abordou o trabalho durante a pandemia.

O impacto da morte de Domenico De Masi é de nos privar de uma aguçada inteligência. Suas ideias e teses não são isentas de críticas, ao contrário, o diálogo crítico pode enriquecer ainda mais ao se cotejar autores e teorias distintas. Sua vida – de professor e de pesquisador – foi, também, de um intelectual público, já que não se limitou ao conhecimento acadêmico. Sua dimensão pública fez com que assumisse posições acerca dos problemas sociais, políticos e econômicos presentes em nossa realidade.

*Rodrigo Augusto Prando é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM). Graduado em Ciências Sociais, Mestre e Doutor em Sociologia, pela Unesp.

Deixe um comentário

Posts Recentes