Longa de Eduardo Wannmacher constrói figura masculina a partir das perspectivas femininas e captura desencanto da maturidade com matizes da psicanálise e antropologia
Redação Culturize-se
A peculiaridade de “Depois de ser Cinza” salta aos olhos já na ponte que faz entre Porto Alegre e Croácia, mais especificamente nas cidades de Dubrovnik, Zadar e Zagreb. O longa de Eduardo Wannamacher, que assume a lógica de um road movie em sua composição na Croácia, propõe esse intercâmbio, tanto espacial como temporal, para dimensionar o status quo de uma esquerda progressista desencantada – o filme, pronto desde 2020, foi gravado na esteira das eleições de 2018.
Embora a política não seja tópico aventado em diálogos, a visão de mundo à esquerda permeia todo o longa, é uma característica palpável dos personagens. Três mulheres e um homem que é construído a partir da vivência com elas. “O roteiro é muito completo e o Dudu foi muito generoso na preparação, permitindo que tivéssemos muitas trocas e laboratórios”, disse João Campos, que vive o protagonista Raul, em entrevista ao Culturize-se.
Flagramos seu personagem em diferentes momentos da vida imerso em relações desordenadas com três mulheres muito diferentes. Isabel (Elisa Volpatto), na Croácia, Suzy (Branca Messina), uma presença (de)formadora na faculdade de antropologia, e Manuela (Silvia Lourenço), terapeuta que se descobriu amante.
“A gente convencionou que esse período seria de dez anos”, informa João Campos sobre o recorte temporal que o longa nos oferta sem linearidade. A jornada emocional dos personagens importa mais do que qualquer outra coisa aqui. O longa, cujo roteiro é assinado por Léo Garcia, faz dessa introspecção seu objetivo mor.
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“Foi curioso porque quando comecei a trabalhar nesse filme eu tinha acabado de me separar e então canalizei essa energia para a personagem”, explica Elisa Volpatto sobre a preparação para viver Isabel, que está na Croácia para se reinventar, se perdoar e, quiçá, viver algo capaz de tocá-la. Sua personagem desponta mais intensa logo de largada e esse fluxo de intensidades é um termômetro valioso para a audiência entender onde estão emocionalmente os personagens, sempre em algum condão depressivo.
Eduardo Wannamacher admite que foi difícil conciliar o tempo dramático desses personagens, que dispõem de minutagens distintas na tela, do tempo narrativo do filme. “Para isso o trabalho com os atores era muito importante”, salienta o cineasta que dispensa o uso de preparador de elencos e acredita fielmente nos laboratórios. “Eu mandava o João e a Branca mergulharem nas baladas de Porto Alegre”, rememora sobre como buscava os parâmetros para transmitir a efervescência de cada fase de Raul, a linha mestra narrativa para a audiência, da forma mais orgânica possível.
A sofisticação da proposta de “Depois de Ser Cinza” produz um resultado complexo para apreciação do público, mas isso não implica dizer que seja uma experiência excludente. Há, sim, um desequilíbrio na abordagem dos personagens masculino e femininos, certo ensimesmamento com o mal-estar existencial – a forma como a nudez é registrada acentua a constatação -, e um olhar fetichista para a intelectualidade. Todavia, é um exercício estético robusto no contexto de levar o cinema brasileiro a territórios pouco – ou quase nada – explorados.