Dirigido por Greta Gerwig, “Barbie” conjuga expectativas múltiplas com destreza e se fia tanto como entretenimento como cinema, além de ser um dos mais bem desenhados produtos dos últimos anos
Reinaldo Glioche
A onda rosa que toma o Brasil e o mundo é apenas um dos indicadores da força de “Barbie”, que é, sim, um triunfo do marketing, mas é muito mais do que isso. É um (ótimo) filme, é um product placement dos mais inteligentes já feitos, é um blockbuster capaz de revigorar Hollywood e é, antes de tudo isso, uma demonstração enciclopédica de como administrar e conjugar demandas radicalmente diferentes e entregar um produto esperto que atende a maior parte delas de maneira plena e sagaz.
Greta Gerwig tinha muita pressão sobre seus ombros. Depois de dirigir duas produções indicadas ao Oscar de Melhor Filme, seus primeiros filmes como diretora, registre-se, comandaria seu primeiro projeto assumidamente comercial, “Barbie”. Além da pressão inerente a esse movimento, ela precisaria lidar com as próprias, já que não é o tipo de artista que parece disposta a renunciar a suas nomenclaturas artísticas e temáticas, tampouco poderia alienar o público-alvo de uma produção dessa natureza.
Acrescente a essa panela de pressão, o fato do filme ser o principal lançamento do estúdio, no caso a Warner Bros., na temporada do verão americano de 2023. Adicione o fato de que a Mattel enxerga na produção, uma forma de se viabilizar como produtora de filmes, a exemplo da rival Hasbro, e revitalizar o interesse por uma de suas principais criações. Tem mais! Em uma Hollywood pautada por sequências e refilmagens, ainda que “Barbie” seja uma adaptação de um brinquedo, doravante uma propriedade intelectual bem conhecida, trata-se de um filme original em um ambiente mercadológico bastante hostil ao desenvolvimento desse tipo de produção.
Como se isso não fosse o suficiente, eis uma questão transcendental: como fazer um filme da Barbie sem ser bobo, pitoresco e (apenas) infantil?
Greta Gerwig trabalhou no roteiro com seu marido, que foi seu diretor em diferentes ocasiões, Noah Baumbach e o texto foi desenvolvido para acomodar demandas – que são mais do que apenas as apontadas aqui, talvez as mais enfáticas -, mas também para andar com as próprias pernas.
A resposta encontrada para administrar toda essa tumultuada claque foi a autoconsciência. “Barbie” sabe que é um filme, sabe que é um produto em uma lógica capitalista atroz, sabe que é alvo de expectativas da agenda feminista, sabe que seus arreios narrativos são infantis e perdulários e sabe que precisa ser eficiente a despeito de tudo isso. A metalinguagem, então, foi escolhida para ridicularizar boa parte disso. Da Mattel, aqui desenhada como uma empresa algo inescrupulosa visando apenas lucros, ao contraste entre Barbieland e o mundo real; da abertura com a genial referência a “2001” às piscadelas aqui e ali zoando “Matrix” e a jornada do herói e a própria protagonista Margot Robbie dentro do escopo de sua personagem, a metalinguagem surfa junto com a audiência.
Gerwig abre seu manual cinéfilo e encerra com acenos carinhosos a “Pinóquio”, mas quando chega ali seu filme, uma apoteose comercial e um cult indisfarçável, já se convencionou melhor como produto do que como filme. Não há nenhum demérito nessa constatação. Afinal, somos todos ‘keneough’.
A grande sacada do filme é acolher todas as tribos com energia e desprendimento. Ele se vale da correção política, mas não é politicamente correto. Abraça a agenda feminista, mas não se furta a fazer críticas pontuais. “Barbie” é um filme de camadas e um produto cheio de subprodutos. Não é o primeiro de sua espécie, mas por todas as forças e contextos envolvidos e pela maneira como tudo foi mimetizado, embalado e desconstruído por Greta Gerwig dá para dizer que é o melhor de todos já produzidos por Hollywood.