Criação de Charlie Brooker ainda aposta na distopia como comentário social, mas relega nossa relação com a tecnologia a um ponto de quase insignificância no novo ciclo de episódios
Por Reinaldo Glioche
Quatro anos e uma pandemia depois da 5ª temporada, “Black Mirror”, antologia que vislumbra potenciais escombros da relação de humanos com a tecnologia, volta com um novo ciclo de episódios que mimetiza muito do que a série sustenta historicamente, mas também aponta para um futuro ruidosamente diferente.
Ao longo de sua jornada, a série, que a partir da 3ª temporada passou a ser uma propriedade intelectual da Netflix, sempre transitou entre gêneros. Do drama ao thriller, do suspense com toques de humor negro ao horror, da ficção científica à sátira, passando pelo policial, entre outros. A novidade nesta 6ª temporada é que “Black Mirror” se afasta, conscientemente, de seu cânone para abraçar um exercício de gênero mais bruto, insidioso e, com isso, revigorar-se enquanto antologia – algo que pode ser até bem-sucedido narrativamente, mas sob o risco de alienar boa parte dos fãs.
Como habitual, especificamente desde a apropriação pela Netflix, a temporada é irregular, mas ganha pontos pela disposição de correr riscos – principalmente nos dois últimos episódios. No todo, porém, está bem abaixo do padrão constituído desde o seu lançamento. Isso se dá em virtude da falta de finesse na condução dessa transição narrativa de um sci-fi que olha critica e imaginativamente para nossa relação com a tecnologia para uma antologia que tem como norte o comentário social e o exercício de gênero pura e simplesmente.
Abaixo, um breve comentário de cada um dos episódios que compõem o 6º ano de “Black Mirror”.
“Joan is Awful”
É o episódio mais cínico do novo lote. A ideia de fim do anonimato já fora explorada pela série antes, mas a perspectiva é nova – e a piada com a Netflix, irresistível. O fato de brincar com as possibilidades da inteligência artificial – com atores cedendo suas imagens para deepfakes apuradíssimos (algo que já está em curso) – ajuda a tornar “Joan is Awful” um episódio consistente e que ganha ainda mais valor na comparação com o restante da safra.
“Loch Henry”
Um comentário algo óbvio e por vezes aborrecido sobre a corrente obsessão pelo true crime. A Netflix novamente serve como para-raio, mas nem mesmo o plot twist no final, que já podia ser antecipado com razoável antecedência, salva a produção da mesmice. Deve agradar mais aos fãs de produções true crime do que aos fãs de “Black Mirror”.
“Beyond the Sea”
É o melhor da temporada. Um reflexão profunda e intensa sobre solidão, reconhecidamente por Brooker influenciada pela pandemia. Traz também as melhores atuações do 6º ano, além de ofertar ao público uma novidade no campo da série, o revisionismo. Tudo muito bem costurado e adornado por um drama existencial de alta qualidade.
“Mazey Day”
Mais um comentário social, no caso sobre ética, fama e a voracidade com que esses conceitos se embaralham e ressignificam diante das circunstâncias. É aqui que a série dá um pulo para o desconhecido, ignorando por completo o aspecto tecnológico e apostando no horror como ponto de ebulição.
“Demon 79”
A transição para uma antologia que se fia apenas no comentário social parece consolidada em “Demon 79”, que materializa a distopia como um elemento mais de fantasia do que algo tangível. Apartando-se dos dois primeiros episódios da temporada, por exemplo. O resultado é profundamente insatisfatório, do ponto de vista dramático.