Legislativo brasileiro se ressente de enfrentar o tema, enquanto isso cidadãos sofrem para ter acesso a tratamentos e o País negligencia uma boa fonte de receita tributária
A liberação do uso da cannabis para fins medicinais é um assunto que ainda hoje gera muitas polêmicas. A planta tem diversas substâncias psicoativas e ficou conhecida principalmente pelas que deixam as pessoas alteradas, ganhando o nome popular de maconha. Mas há outras substâncias que atuam de formas diferentes no organismo, promovendo benefícios diversos.
E embora vários médicos já tenham reconhecido a eficácia de substâncias da cannabis para doenças como epilepsia, Alzheimer, Parkinson, câncer e outras, proporcionando um tratamento alternativo e eficaz, a legislação brasileira ainda dificulta o acesso dos pacientes aos medicamentos, já que, por aqui, o uso da planta é ilegal.
O tema é controverso, também, pelo fato de o uso medicinal ser ainda algo muito recente. No Brasil, foi somente em 2015 que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reconheceu o efeito terapêutico de uma substância derivada da cannabis. Na ocasião, foi aprovado pela primeira vez um medicamento à base da planta, o óleo rico em canabidiol, que passou a ser classificado na lista de substâncias controladas – e não mais na de substâncias proibidas.
Era um medicamento voltado para o tratamento de casos graves de epilepsia em crianças. E a liberação, em caráter excepcional, aconteceu apenas depois que famílias de pacientes entraram na Justiça.
Hoje há alguns outros aprovados para o uso no Brasil, o que não significa que sejam facilmente acessíveis. Para conseguir a medicação, mesmo com a prescrição médica, ainda é necessário ter uma autorização da Anvisa que possibilite realizar a importação. E é preciso arcar com os preços altos.
Outra opção para quem precisa de medicamentos à base de cannabis é entrar na Justiça e exigir que o tratamento seja pago pelo Estado, o que também não é uma alternativa simples e nem rápida.
Além disso, há muitas pessoas que ainda confundem o uso medicinal com o uso recreativo, bem como as diferentes propriedades da planta e as regras que seriam permitidas com uma possível regulamentação do plantio.
Tudo isso faz com que as discussões acerca do tema sejam ainda mais intensas, o que dificulta um entendimento comum.
Propriedades medicinais da Cannabis
Um ponto importante para desmembrar as situações e compreender o que vem sendo solicitado é saber que a planta cannabis tem centenas de compostos químicos, com diferentes efeitos.
Um deles, o THC (tetra-hidrocanabinol), tem propriedades alucinógenas e foi o que fez a planta ficar conhecida popularmente como maconha.
Outro componente da cannabis que é muito estudado é o CBD (canabidiol), que tem diversas propriedades medicinais comprovadas pela ciência e não provoca efeitos alucinógenos.
Nas Olimpíadas de Tóquio, em 2022, pela primeira vez o CBD constou na lista de substância liberadas para uso pelos atletas sem que fosse considerado doping. A substância pode ajudar a amenizar dores musculares e nas articulações, além de ansiedade, tensão nervosa, insônia e outros problemas comuns na vida de competidores de alto nível. A expectativa agora é de que isso seja algo ainda mais comum na próxima edição dos Jogos Olímpicos, que será realizada em 2024 em Paris.
No Brasil, os debates sobre o tema surgiram aos poucos. Em 2006 aconteceu no Rio de Janeiro a primeira manifestação do movimento social Marcha da Maconha, que teve início no exterior em 1998 como parte da luta em favor da liberação da maconha para consumo e fins medicinais. O movimento foi se disseminando e passando a acontecer também em outras cidades, com um número cada vez maior de adeptos.
Em 2010, o documentário “Cortina de Fumaça” de Rodrigo Mac Niven, teve grande repercussão ao levar para o grande público uma abordagem multidisciplinar sobre o uso medicinal da maconha, dando início a discussões mais intensas, inclusive com novas abordagens sendo divulgadas pela mídia.
A partir disso, alguns dos principais casos de sucesso de tratamentos realizados com canabidiol em todo o mundo também foram se tornando mais e mais conhecidos e falados, despertando o interesse de mais pessoas.
Com os novos movimentos acontecendo, em 2014 foi fundada a Plataforma Brasileira de Políticas Sobre Drogas, uma rede para a atuação conjunta de organizações não governamentais, coletivos e especialistas de diversos campos de atuação que busca debater e promover políticas de drogas fundamentadas na garantia dos direitos humanos e na redução dos danos.
Em relação ao uso medicinal, começam a surgir também muitos grupos de pacientes, que se organizam em associações e ONGs que lutam pela legalização do cultivo e pela democratização dos medicamentos. E vieram os diversos projetos de lei que tratam sobre o tema, buscando formas de regulamentar o uso em alguns casos.
O advogado Cesar Beck, mestre em Direitos Humanos e especialista em Direito Constitucional, explica que há evidências científicas e que estudos em seres humanos e pesquisas rigorosas já foram conduzidas em diversos países do mundo como Irlanda, Estados Unidos e Uruguai.
E que é importante que esses estudos sejam contínuos, para melhor entender o impacto da liberação, avaliando possíveis riscos, assim como os benefícios da cannabis no tratamento de diversas condições médicas no longo prazo.
Ele acredita também que é possível estabelecer parâmetros para a vertente medicinal sem necessariamente encarar o debate sobre o uso recreativo. E ressalta que a regulamentação deve ser sempre baseada em evidências científicas sólidas, levando em consideração a segurança e a eficácia dos produtos.
Para isso, pontua que é necessário estabelecer uma regulamentação clara e transparente para a produção, distribuição e uso da cannabis medicinal. “Isso pode ajudar a garantir que os pacientes tenham acesso a produtos seguros e de alta qualidade, verificados e aprovados pela Anvisa, enquanto cria uma nova fonte de receita tributária para o país”, diz.
Quando a cannabis pode ser prescrita por um médico?
De acordo com o médico psiquiatra Wilson Lessa Júnior, que estuda o tema desde 2016 e prescreve esses medicamentos desde 2017, os fitocanabinoides, que são os compostos com propriedades medicinais da cannabis, interagem com um sistema fisiológico amplamente distribuído em nossas células, conhecido como sistema endocanabinoide, que é responsável pela homeostase (equilíbrio) do funcionamento de diversos outros sistemas fisiológicos.
Ele explica que existem diferentes níveis de evidências científicas para o uso da medicação em diversas doenças. “Esses medicamentos podem ser prescritos em casos de dor neuropática, epilepsia, para mitigar efeitos colaterais da quimioterapia, transtornos do espectro autista, transtornos comportamentais nas demências, Parkinson, fibromialgia, transtorno do estresse pós-traumático, transtornos de ansiedade, enxaqueca, endometriose, síndrome do intestino irritável, entre outros”, cita.
Os medicamentos à base de cannabis aprovados até o momento no Brasil pela Anvisa são os óleos, as cápsulas orais, o spray oral e o spray nasal, cada um com diferentes indicações, dependendo de cada caso.
Ainda de acordo com o médico, que é Primeiro-Secretário da AMBCANN (Associação Médica Brasileira de Endocanabinologia), o CBD não tem risco de causar dependência. Já o THC em altas dosagens (o que não é comum de ser prescrito) pode ter esse risco. “Todavia esse risco é menor do que aqueles relacionados a outros medicamentos, tais como os benzodiazepínicos, psicoestimulantes e opioides“, ressalta.
Vale lembrar que apenas as especialidades de neurologia, de neurocirurgia e de psiquiatria podem prescrever o canabidiol. E os médicos precisam estar cadastrados previamente em uma plataforma online criada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) com esta finalidade.
Já o paciente precisa ter sempre uma receita médica para que consiga comprar ou importar o medicamento necessário.
E é importante que o profissional que irá receitar o uso tenha pleno entendimento sobre os benefícios para o tratamento, o que é essencial também para combater a desinformação ainda dentro do consultório.
O que diz a legislação brasileira hoje?
No Brasil, atualmente, está em vigor a Lei Antidrogas (Lei 11.343 de 2006), que condena a posse de maconha. Com a questão do uso medicinal, novas discussões têm surgido e ganhado cada vez mais espaço, o que pode ser interessante pois, ao ampliar o debate, as informações tendem a alcançar mais pessoas, ajudando a romper alguns tabus causados por desconhecimento.
Entre os projetos de lei que estão em andamento, o que mais avançou até agora foi o PL 399/2015 do deputado Fábio Mitidieri (PSD/SE), que propõe uma alteração no art. 2º da Lei nº 11.343 para viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da cannabis na formulação sem que isso seja considerado um ato ilícito.
O PL 399/15 permitiria o cultivo em todo o país para fins medicinais, científicos e industriais, mas apenas para pessoas jurídicas ou associações. Para realizar este cultivo, seria exigida uma autorização da Anvisa (para remédios) e do Ministério da Agricultura (para uso industrial ou veterinário), além de certificação dos teores de THC das sementes utilizadas e controle de acesso ao local do cultivo.
Em relação aos medicamentos, o PL propõe que haja a exigência da comercialização em embalagens invioláveis e apenas com prescrição médica. As farmácias fitoterápicas do SUS poderiam cultivar a planta para elaborar produtos, assim como as farmácias de manipulação. E a Anvisa ficaria responsável pelo controle de preço e publicidade.
O PL 399/15 também autorizaria a pesquisa científica e outros pontos relacionados à cannabis, mas não toca na questão do uso recreativo.
Já o PL 4776, de 2019, do senador Flávio Arns (REDE/PR), visa autorizar a produção de cannabis para fins medicinais, incluindo a produção dos medicamentos no Brasil, com controle e fiscalização sanitária, além da venda exclusiva em farmácias. Autoriza, também, a prescrição no SUS e pede um procedimento simplificado para a importação direta no caso de uso pessoal.
E o PL° 89, de 2023, do senador Paulo Paim (PT/RS), que é o mais recente, institui a Política Nacional de Fornecimento Gratuito de Medicamentos Formulados de Derivado Vegetal à Base de Canabidiol nas unidades de saúde públicas e privadas conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Andamento dos debates sobre o tema e novos projetos
Em 2021, a comissão especial da Câmara dos Deputados que analisou o PL 399/2015 aprovou a legalização do cultivo no Brasil para fins medicinais, científicos e industriais, na forma do substitutivo apresentado pelo deputado Luciano Ducci (PSB-PR), impondo algumas restrições.
De acordo com esse substitutivo, o plantio poderia ser feito apenas por empresas, associações de pacientes e ONGs. E continuariam proibidos os cigarros, chás e outros itens derivados da planta.
Mas houve recurso, com troca de acusações, alegações de que a proposta estaria “abrangente demais”, citando riscos à segurança pública. Assim, o PL segue em análise.
Até mesmo integrantes da ala mais conservadora do congresso concordam com o uso medicinal, mas é contra o plantio, pois acham que é preciso continuar importando os medicamentos. Essa é uma grande luta de pacientes, médicos e ativistas da causa.
O sociólogo Arthur Snninhofer pontua que, mesmo com diversas discussões já tendo sido iniciadas, pouco se avançou na efetivação desse processo regulatório. “Em 2020 a Comissão de Drogas Narcóticas (CDN) da ONU classificou a Cannabis para a lista de plantas que têm propriedades medicinais reconhecidas e relevantes. Mas o Brasil se coloca na retaguarda desse movimento”.
Por ser um tema que envolve diferentes focos – a substância em si, as pessoas, a sociedade – o debate se torna ainda mais difícil. “Um dos maiores empecilhos se estabelece na consolidação da desinformação para formação de opinião, com jargões jornalísticos que apontam genericamente a ‘descriminalização das drogas’ como sendo a única saída para problemas relacionados ao tráfico e seguidamente trazem informações sobre índices de criminalidade. Isso assusta ainda mais boa parte da população que, por sua vez, cobra uma posição conservadora e negacionista do Congresso. É a desinformação funcionando como muro de concreto“, diz.
Em 2023, já na gestão do presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), o assunto foi debatido na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, que analisa proposições relacionadas à garantia e promoção dos direitos humanos, debatendo assuntos importantes que visam o bem-estar da população brasileira e buscando aprovar projetos de interesse da sociedade.
Há uma pressão para que o legislativo federal enfrente a matéria. No entanto, esse é o legislativo mais conservador desde a redemocratização do país, com políticos que usam os riscos do uso recreativo como argumento para vetar o uso medicinal, o que também acaba confundindo e até mesmo amedrontando muitas pessoas, aumentando ainda mais o preconceito.
Para o sociólogo, a complexidade em torno da descriminalização da maconha se estabelece na estrutura social que temos no Brasil. “Somos uma sociedade em sua ampla maioria conservadora, basta olhar com atenção a composição do nosso congresso. E essa composição representativa, que reflete naturalmente a nossa estrutura social, na maioria das vezes costuma travar ou até mesmo subverter inovações legais que regulam a modernização da sociedade brasileira”, pontua.
Ele cita o exemplo de outros assuntos que também são considerados polêmicos. “Na arena pública, quando discutidas questões relacionadas à legalização do aborto e até mesmo casamentos homoafetivos, este espírito conservador brasileiro veem à tona com muita força e costumam (tanto no caso da maconha, quanto nos demais citados) cobrar resultados dos congressistas brasileiros”.
Para o advogado Cesar Beck, a melhor forma de reduzir a complexidade na discussão sobre a descriminalização do uso da maconha é haver um diálogo aberto e honesto entre todas as partes envolvidas. “Isso inclui especialistas em saúde pública, representantes do governo, usuários de maconha e membros da sociedade civil”, diz. Mas vale sempre ressaltar que os projetos de lei sobre o uso do canabidiol em medicamentos nada têm a ver com a questão do uso recreativo da maconha, bem como os possíveis desdobramentos em relação à descriminalização ou legalização. São assuntos distintos e devem ser compreendidos e analisados separadamente.
Combater o preconceito é urgente
Para o empresário e ativista Pedro Sabaciauskis, presidente da Santa Cannabis – Associação Brasileira de Cannabis Medicinal, a falta de informação é também a principal dificuldade nos casos de pacientes que recebem a prescrição de um tratamento com medicamentos à base de cannabis. “Depois que passa a fase de conhecimento, a maior dificuldade é o acesso, que hoje é limitado, porque depende de um processo burocrático, pedido da Anvisa, importação. São custos muito altos”, lamenta.
Foi uma situação familiar que fez com que ele se engajasse na causa, quando a avó, que tem Parkinson, foi indicada para tomar um medicamento à base de cannabis. “Conseguimos através de outra associação. E esse resultado me motivou, junto com outros pacientes de Parkinson, a montar a Associação Santa Cannabis, que nasceu em janeiro de 2019”, lembra.
Hoje a Santa Cannabis atua em território nacional, atendendo a mais de 4 mil pacientes, auxiliando no processo para conseguir os medicamentos junto à Anvisa, apoiando as pessoas que buscam o direito de cultivar a planta e também as que buscam o fornecimento dos medicamentos via SUS e/ou via plano de saúde, além de realizar pesquisas e cursos sobre o tema.
Foi também uma situação familiar que levou Margarete Brito, advogada com especialização em responsabilidade social e terceiro setor, a fundar a APEPI – Apoio a Pesquisa e Pacientes de Cannabis. “Em 2013 descobri que a cannabis poderia ser uma alternativa terapêutica para o controle das convulsões da minha filha Sofia. Foi uma luta individual que acabou se tornando coletiva”, conta.
Margarete foi a primeira brasileira a receber o Habeas Corpus para o cultivo individual para produção de remédio para a sua filha. E se tornou a principal referência de ativismo canábico no Brasil.
Em 2014, sua história foi relatada no premiado documentário “Ilegal – A vida não espera”. “O documentário foi veiculado no Fantástico. Com isso eu fiquei em evidência e muitas famílias passaram a me procurar para saber como conseguir um médico, com conseguir a medicação”, lembra. Junto com seu companheiro e também diretor e fundador da APEPI, Marcos Lins, receberam a segunda autorização judicial para o cultivo pela Associação.
Hoje APEPI tem várias frentes de trabalho, sendo o principal deles o fornecimento do óleo, promovendo o acesso ao uso medicinal da cannabis. Realiza também trabalho de pesquisa em parceria com universidades, serviço médico, projetos voltados para a educação, grupos de discussão, entre outros. “O desconhecimento e o preconceito andam juntos, por isso trabalhamos muito com a questão da educação”, conta.
Na visão de Sabaciauskis, é muito importante que a opinião pública entenda e apoie o trabalho das associações e a regulamentação nacional. “A única maneira de combater o preconceito é a informação. Precisamos informar que a medicação faz bem à saúde, com riscos muito baixos, e que pode tratar diversas doenças em pessoas com diversas idades. Há pacientes de 6 meses a 100 anos, com mais de 200 indicações para uso. Precisamos conseguir desmistificar muita informação falsa que circulou nos últimos 50 anos”, ressalta.
O médico Wilson Lessa Júnior também reforça a importância do trabalho realizado pelas associações. “Essas associações plantam e produzem extratos para aproximadamente 70 mil pacientes no Brasil, o que representa mais de um terço do total de pacientes no país. Esse modelo e abrangência associativa são únicos no mundo”, elogia.
Para o advogado Cesar Beck, um ponto essencial é a realização de campanhas voltadas para a educação da população em geral e investimentos em pesquisas, o que poderá ajudar a construir uma sociedade mais informada e enriquecer o debate no Congresso Nacional pela descriminalização.
A partir disso, ele acredita ser possível até mesmo abrir o debate sobre a descriminalização do uso recreativo e entender alguns pontos positivos. “O debate sobre a descriminalização do uso da maconha tem sido um assunto polêmico e envolve diferentes perspectivas e opiniões. No entanto, há uma série de benefícios”, diz. “A falta de uma definição clara da quantidade de drogas que caracteriza o tráfico é um problema sério que afeta muitos usuários de maconha e a descriminalização pode ajudar a resolver essa questão e permitir que a justiça se concentre em crimes mais graves”, complementa.
Segundo ele, a descriminalização pode, ainda, reduzir o estigma associado ao uso da maconha e melhorar a saúde pública. “A descriminalização permitiria que os usuários de maconha tivessem acesso a informações e serviços de saúde para ajudá-los a reduzir os riscos associados ao uso, o que também poderia ajudar a reduzir o uso de drogas mais perigosas e potencialmente letais”.