Os remédios psiquiátricos podem e devem ajudar quem precisa, mas não podem virar uma regra nos consultórios e na rotina dos pacientes
Por Ana Carolina Pereira
Depois dos primeiros anos de pandemia de Covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou que o mundo está vivendo uma segunda epidemia, uma forte consequência da primeira, que, dessa vez, em vez de os pulmões, está afetando a saúde mental da população.
O impacto emocional das perdas que o coronavírus trouxe, atrelado ao isolamento social e ao medo da doença e das consequências desse período para outros âmbitos da vida, incluindo o financeiro, trouxe angústias e ansiedades para boa parte da população.
Para se ter ideia, só no primeiro ano da pandemia, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25%, segundo dados da OMS. Esses dados têm impacto direto na prescrição e no consumo de medicamentos psiquiátricos. Dados do Conselho Federal de Farmácia apontam que a venda desses medicamentos cresceu cerca de 58% entre os anos de 2017 e 2021.
E, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, só em 2022, o aumento de uso de medicamentos para tratamentos de transtornos mentais foi de 40%. Hoje, a associação estima que mais de 50 milhões de pessoas convivem com condições como depressão, ansiedade, transtornos alimentares, transtornos de humor e esquizofrenia no país.
Em alguns casos, o uso de medicamentos é realmente necessário para o alcance de bons resultados de tratamento, como explica a psiquiatra Jaqueline Sanches, que é doutora em transtornos mentais e saúde comportamental. Mas o perigo consiste no excesso dessas drogas que, como tudo que é exagerado ou não recomendado, faz muito mais mal do que bem.
O perigo do uso indiscriminado de medicamentos psiquiátricos
A especialista pontua que os transtornos mentais são chamados assim exatamente porque são complexos e precisam ser olhados, diagnosticados e tratados por diferentes aspectos. Segundo ela, na maioria dos casos, apenas o remédio, em si, não resolve o problema por completo e não pode ser considerado um tratamento.
“A maioria do trabalho feito com pacientes com transtornos mentais inclui, além dos medicamentos – que não são regra nos tratamentos –, acompanhamento multidisciplinar, com algum tipo de terapia, geralmente feita com profissionais como psicólogos ou psicanalistas, pode envolver até nutricionistas e em muitos casos, na minha clínica, eu incluo ao tratamento a prática de exercícios físicos, que trazem inúmeros benefícios e liberam neurotransmissores como serotonina, dopamina e noradrenalina, que trazem a sensação de satisfação e bem-estar”, diz.
Um dos maiores desafios dos consultórios psiquiátricos, como relata Jaqueline, tem a ver também com a irresponsabilidade de outros profissionais, que acabam receitando medicamentos controlados sem uma avaliação total do quadro ou de pacientes que passam a se automedicar.
“Eu recebo na clínica pacientes com distúrbios neuropsiquiátricos graves e com consequências físicas, doenças que foram desenvolvidas pelo uso abusivo de medicamentos psicotrópicos que ou foram mal indicados ou estão sendo utilizados de forma incorreta, por muito mais tempo do que o necessário ou com super dosagens”, diz.
O mau uso desses medicamentos pode causar o efeito contrário ao desejado, como irritabilidade, ansiedade, alterações de humor, psicoses, pânico, convulsões, arritmias, além do risco de dependência.
Para dormir, para acordar, para relaxar e para sorrir
De acordo com a especialista, o grande problema em relação aos medicamentos psiquiátricos no momento é que eles estão sendo utilizados como muletas e de forma constante e indiscriminada para atividades que deveriam ser naturais, como dormir, relaxar, se concentrar e até ser feliz.
“Parece brincadeira, mas eu atendo pacientes que abrem a cartela de comprimidos e me contam quais usam, em quais momentos e com quais finalidades. Seus organismos já não fazem mais nada sozinhos, só funcionam à base de drogas e fazer o desmame nesse tipo de cenário é muito complicado, é um grande desafio dos profissionais de saúde”.
Jaqueline cita o famoso Zolpidem, medicamento da classe dos hipnóticos que induz o sono e causa efeito sedativo, que tem ganhado destaque exatamente por seu uso indevido. “Esse é um excelente exemplo, porque o medicamento é muito potente e pode realmente ajudar em alguns casos. Mas ele não foi feito para ser utilizado por um longo período de tempo e pode causar extrema dependência. Nenhuma droga sedativa, inclusive, deveria ser incluída à rotina de uma pessoa que tem insônia. Ele é parte do tratamento e não o todo. Mas agora temos uma verdadeira epidemia da droga, que pode trazer muitos malefícios e será difícil de ser controlada”, afirma.
Ela reforça que o trabalho da psiquiatria é devolver para o paciente a habilidade que ele tem – ou deveria ter – de realizar todas as ações descritas acima, de forma natural e independente de medicamentos. “O uso constante de medicamentos será indicado apenas para uma parcela da população que realmente precisa repor esses compostos de forma definitiva. Para a maioria dos pacientes, no entanto, o medicamento vai ser apenas uma ajuda, que deve ser revista de tempos em tempos e, idealmente, retirada da rotina”, ressalta.
“O mundo todo passou por momentos desafiadores e a saúde mental da população está realmente em jogo. Mas não podemos – ambos profissionais da saúde e pacientes – sermos irresponsáveis e começar uma nova pandemia, dessa vez de medicamentos”, conclui.