Obra é o primeiro romance policial escrito por um autor negro e tem trama protagonizada por personagens pretos durante a Renascença do Harlem
Aline Viana
“A morte do adivinho”, de Rudolph Fisher (editora HarperCollins, 304 páginas), é o primeiro romance policial escrito por um autor negro estadunidense em 1932. A obra é fruto do chamado Renascimento do Harlem, bairro onde viveu o autor e onde se passa a trama da história, com todos os personagens emblemáticos, suíngue e plot twists a que se tem direito.
Ao Brasil, esta primeira edição em português chega após um projeto de crowfunding da Escureceu Editora não ter atingido a meta e ser posteriormente resgatado pelo braço brasileiro da HarperCollins.
Rudolph Fisher é o caçula de três irmãos de um casal composto por uma mãe dona de casa e de um pastor batista negros que rodaram meio mundo antes de se fixarem em Providence, Rhode Island.
Logo cedo, demonstrou talento para os estudos e assim conseguiu formar-se em literatura e biologia na Universidade de Brown, onde também obteve o mestrado em 1920. Quatro anos depois, ele conquistou o diploma de médico pela Universidade Howard e se tornou um dos 34 homens negros que atuavam ou lecionavam radiologia nos EUA à época.
Fizemos aqui a exposição do currículo porque ele é, e seria ainda hoje, bastante impressionante para um homem dedicado à literatura. Um homem negro que, vindo de uma família humilde, ascende por meio da educação e vai viver em um bairro que recusou veementemente a sina de gueto: o Harlem, em Nova Iorque.
A coisa aconteceu porque o bairro havia recebido uma leva de novos empreendimentos para serem ocupados pela classe média branca, porém, o plano falhou por completo e a vizinhança foi, aos poucos, ocupada por negros de todos os espectros sociais.
Entre as décadas de 1920 e 1930, a Renascença do Harlem, ali viveram nomes como o poeta e dramaturgo Langston Hughes (que acaba de ser publicado pela primeira vez no Brasil pela editora Pinard), o artista plástico Aaron Douglas, a cantora e dançarina Josephine Baker, e os cantores Louis Armstrong e Duke Ellington. Nessa bolha artística perfeita, Fisher abre sua clínica, casa-se, tem um filho, e se torna membro ativo da vida cultural.
Em seu “A morte do adivinho”, somos apresentados a um romance policial de quarto fechado: Frimbo, um rei auto exilado de um povo africano atua como adivinho para ganhar a vida até que num sábado à noite ele é morto em plena atividade.
Os suspeitos são todas figuras comuns do Harlem: dois malandros, um leão de chácara, um funcionário da companhia de trens que tem esposa e amante cada uma numa ponta da linha, um viciado, a esposa do dono do imóvel alugado por Frimbo, uma fanática religiosa que precisa que o milagre do marido bêbado deixar de agredi-la ocorra o quanto antes e o assistente de Frimbo.
Na ponta da investigação que se propõe todo rigor científico, temos o médico, Dr. Archer, que foi chamado para socorrer Frimbo após o ataque que o vitimou, e o detetive Perry Dart.
Com “A morte do adivinho”, Fisher disputava espaço em plena era do ouro do romance policial. Naqueles anos, as livrarias traziam lançamentos de nomes que se tornariam clássicos como Agatha Christie, Dashiel Hammett e Georges Simenon.
É fácil entender porque esse livro furou a barreira de raça e se tornou um sucesso também entre os leitores brancos: o autor está constantemente levantando a bola da trama, sem deixá-la nunca cair ao chão.
Se hoje, isso nos parece essencial e algo que faz com que a obra transcenda seu tempo, era algo que incomodava outros autores da comunidade negra, que acusavam Fisher de não ser ativista o suficiente. Eis uma acusação que, infelizmente, parece resistir com tranquilidade à passagem do tempo e estar sempre à mão dos invejosos de plantão.
Em defesa de Fisher, é nítido que seus personagens escapam à caricatura de pessoa negra que os autores brancos adotavam em suas obras – vale lembrar que após a 1ª Guerra Mundial, a população negra nos grandes centros estadunidenses saltou de 23% para 48%. Além disso, o vigor das chamadas leis separatistas de Jim Crow, que se tornaram mais conhecidas pelo público brasileiro com a série “Lovecraft Country” (HBO, 2020), mostravam que os atritos entre brancos e negros constituíam um verdadeiro apartheid em boa parte do território norte-americano.
Muitos dos sujeitos que desfilam na obra falam um legítimo “harlemês”, como dizia o autor, e todos discutiam questões como a violência policial, a desigualdade social, a herança cultural e religiosa africana e o colorismo.
Ao mesmo tempo, as páginas são arejadas pelo humor, por discussões filosóficas e metafísicas e até por certa dose de especulação científica. Sim, porque o mago Frimbo afirma fazer experiências e inventos em seu laboratório quando não está sintonizado em outra frequência para conferir o futuro de seus consulentes.
É uma pena que Fisher tenha morrido em 1934, apenas dois anos após a publicação desta obra, quando ele ainda trabalhava na adaptação do texto para o teatro. É possível visualizar que o dr. Archer e Perry Dart teriam vida longa, no melhor estilo Sherlock Holmes e dr. Watson.
A morte do adivinho
Rudolph Fisher
Editora HarperCollins
304 páginas
Preço do exemplar impresso: R$ 59,90 (edição em brochura, mas há edições em capa dura e com brindes); e do e-book: R$ 31,41