Editora Pinard se propõe a resgatar obras fundamentais da literatura latino-americana por meio de financiamento coletivo; editores prometem entregar “objetos-livro” tão cobiçados quanto a obra em si
Aline Viana
O principal romance da literatura do Equador está fora de linha no Brasil desde os anos 1980. Trata-se de “Huasipungo”, de Jorge Icaza (tradução de Gilson Charles dos Santos), que deve sair em uma nova e caprichada edição pela editora Pinard ainda neste semestre.
Usamos o modo subjuntivo porque, embora a equipe da editora esteja otimista, se teremos ou não uma nova edição de “Huasipungo” irá depender de uma campanha de crowdfunding (ou vaquinha virtual) que está acontecendo ao longo das próximas semanas.
“Em vez de ser cruel com os runas, em vez de marcá-los na testa ou no peito com ferro em brasa como se faz com as ovelhas da fazenda para que não se percam, eu devia ter organizado grandes mingas[1] com eles… Eu teria evitado essa viagenzinha de merda. De merdaaa… Nesta época o único que meteu a cara foi o presidente Garcia Moreno. Soube aproveitar a energia dos delinquentes e dos índios na construção da estrada até Riobamba. Tudo na força do chicote… Ah! O chicote que curava o soroche ao passar dos páramos de Chimborazo, que levantava os caídos, que domava os rebeldes. O chicote do progresso. Homem imaculado, homem grande.“
[1] Em quéchua, mutirões.
(“Huasipungo”, de Jorge Icaza, em tradução de Gilson Charles dos Santos)
O crowdfunding foi a forma como Igor Miranda passou de influenciador digital, especializado em literatura, para o outro lado do balcão: agora ele, juntamente com Paulo Lannes (do perfil Lendo Arte), toca a editora Pinard.
Tudo começou quando Miranda decidiu fazer uma campanha para ler autores latino-americanos no seu perfil, “A estante em mim”. Montou uma lista com nomes de norte a sul e foi mostrar ao amigo, Lannes, que tem doutorado em literatura.
Das 17 obras que Miranda havia selecionado, a lista cresceu e cresceu. A ideia inicial é que ambos os perfis dividissem a lista de leituras e pudessem discutir as obras posteriormente. Porém, boa parte das obras que Lannes, junto com o seu então namorado, André Aires, adicionaram à seleção estava fora de catálogo e era quase impossível de ser encontrada pelos sebos de todo País.
E como não sabia que era impossível, foi lá e fez
Miranda, então, com aquela lista nas mãos, se permitiu sonhar alto com o amigo: “e se a gente fizesse um financiamento coletivo para lançar o “Dona Bárbara”? O André traduz, porque ele é tradutor…”.
E como diz o ditado, “como não sabia que era impossível, foi lá e fez”. Ligou na mesma gráfica que fez a edição de 2012 de “Oblomov”, de Ivan Goranchov , para a Cosac Naify – um biscoito finíssimo, primeira vez que o livro era traduzido diretamente do russo para o português, com projeto gráfico primoroso, que trazia uma capa em tecido – e pediu um orçamento. Apenas para efeito de comparação, a tal edição do Oblomov, hoje, sai por valores que vão de R$ 210 a R$ 900.
“Aprendi muito no caminho: como comprar direito autoral, que tem alguém que faz a tradução, outro faz a revisão, mais alguém faz a ficha catalográfica, como mandar dinheiro para outro país para pagar não sei o quê”, enumera Miranda.
E foi assim que eles de projeto em projeto foram criando um time que hoje não deve nada ao de grandes editoras, que primam tanto pelo conteúdo quanto pelo design visual de suas obras.
Apesar da entrega de um “objeto livro” caprichado, com material extra e capa dura, os resultados financeiros são modestos. A empreitada exige uma reserva de capital distante da capacidade dos atuais sócios.
“A gente não consegue fazer coisas que exijam muito dinheiro adiantado. Consigo comprar o direito autoral de uma obra, mas livros grandes e super importantes são mais difíceis. Tem projetos em que a tradução vai levar mais de um ano para acontecer”, comenta o editor.
Entre os projetos que teriam gestação de elefante e demorariam para se viabilizar, Miranda cita dois clássicos ingleses “Tom Jones”, de Henry Fielding, e “Clarissa”, de Samuel Richardson – ambos com centenas de páginas cada e fora de catálogo em português do Brasil.
O retorno do público também é diferente daquele recebido pelas editoras tradicionais, conta Miranda: “É realmente um negócio feito por amor e as pessoas se sentem parte do projeto. Quando a pessoa apoia o projeto, ela sabe que aquele livro está no mundo porque ela ajudou com um tijolinho, eles se sentem parte dessa história. Temos um público bem cativo e que faz a gente pensar em novos projetos”.
Missão
No site da Pinard eles poderiam incluir uma seção para “Missão, Visão e Valores”, como deve constar na cartilha do site para a pequena empresa. Em vez de palavras pomposas e vagas, eles poderiam incluir no tópico o que Miranda contou à reportagem do Culturize-se: a meta é resgatar para o leitor brasileiro deste século 21 autores basilares da literatura e que estão inacessíveis, seja por nunca terem sido adequadamente traduzidos, seja por estarem fora de catálogo.
A franca maioria dos autores publicados pela Pinard é de nomes latino-americanos, porém, um dos projetos de maior sucesso da casa foi a publicação de “Middlemarch”, de George Eliot – pseudônimo de Mary Ann Evans, autora inglesa do século 18. Trata-se de um tijolo de 900 páginas e considerado por Virginia Wolf “um dos poucos romances ingleses escritos para adultos”.
Discussões (infelizmente) atuais
Se a Pinard tem esse propósito de resgatar obras antigas, é impressionante o quanto essas obras-primas se mantêm atuais. “Huasipungo”, o projeto da vez, é uma obra de 1934 que possui sua trama centrada na questão do povo quéchua, população original do Equador.
“Huasipungo” é o nome que se dá à parte do terreno que era cedida aos indígenas para que cultivassem seus alimentos, em troca do trabalho que exerciam no restante da fazenda. Era um sistema que evocava de forma bem pouco sutil tanto o regime feudalista quanto o sistema escravocrata, pois os trabalhadores podiam ser negociados, como qualquer outro bem do negócio.
“ – Os índios se aferram com amor cego e doentio a esse pedaço de terra que recebem pelo trabalho na fazenda. E mais: no meio da sua ignorância, acham que é propriedade deles. O senhor sabe. Ali erguem suas cabanas, criam suas pequenas hortas, cuidam dos seus animais.
– Sentimentalismo. Devemos vencer todas as dificuldades, por mais duras que sejam. Os índios… e daí? O que nos importam os índios? Melhor dizendo… devem… devem nos importar… claro. Eles podem ser um fator importantíssimo na empresa. Os braços… o trabalho…”
(“Huasipungo”, de Jorge Icaza, em tradução de Gilson Charles dos Santos)
No livro, Don Alfonso Pereira deixa a vida na cidade para tocar suas fazendas no interior. Para sanar seus problemas financeiros, Alfonso aceita o conselho de um tio que propõe trocar a agricultura pela exploração de poços de petróleo. Como de soluções fáceis, o capitalismo falido está cheio, Alfonso passa a explorar cada vez mais os huasipungos para tentar salvar suas finanças. Não bastasse isso, o fazendeiro ainda tem que lidar com o fato de que sua filha tenha engravidado de um dos indígenas.
Jorge Icaza 1906-1978) era um estudante de medicina que largou a faculdade para investir nas artes cênicas. Ao se tornar famoso na capital, passa a viajar pelo país com sua trupe e a testemunhar a realidade do povo quéchua. Icaza inaugurou o chamado “realismo brutal” e antecipou também o famoso realismo mágico que percorre todo continente latino-americano.
Serviço:
“Huasinpungo”
Jorge Icaza (tradução de Gilson Charles dos Santos)
Editora Pinard
A partir de R$ 79 – as recompensas variam conforme a contribuição escolhida pelo leitor na plataforma de crowdfunding