A clínica psicanalítica remota

Por Paula Dias de Andrade Hilgeland*

Durante a pandemia de 2020/21, descobri com intensa clareza a importância e significado da profissão de psicóloga clínica e psicanalista que tantos anos atrás eu havia escolhido. Tão logo surgiram os primeiros casos de Covid-19 seguidos de inúmeras mortes, o mundo foi acometido por um medo coletivo, algo inimaginável para os tais “dias de hoje”. Foi uma experiência única; nossa existência como seres humanos estava ameaçada! Apesar de todo treinamento e maturidade profissionais, eu não estava igualmente preparada para o que vivemos.

No entanto, dada nossa evidente capacidade de adaptação (pois somos seres da natureza), fomos criando meios de continuar a trabalhar e sobreviver, enquanto milhares de pessoas partiam devido ao coronavírus. (Acrescento aqui minha profunda gratidão aos cientistas e aos profissionais da saúde, os da linha de frente principalmente, que se arriscaram e enfrentaram a pandemia.)

Agora, enquanto reflito sobre época tão recente, é fato que com a possibilidade do atendimento clínico à distância através de dispositivos eletrônicos, muita gente foi capaz de buscar e obter um suporte psicológico e afetivo para a situação de isolamento que a pandemia gerou. Ouso dizer que aqueles que já se encontravam antes e os que durante se engajaram no processo de psicoterapia (ou análise) atravessaram o dramático período não ilesos mas sobreviventes em certo sentido.

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Isolamento, pandemia e muitos desafios: profissionais de saúde mental foram demandados ao extremo | Foto: Pexels

A situação mundial extrema que experienciamos por causa do coronavírus despertou o que chamamos de fantasias inconscientes. Digamos que a ameaça externa “cutucou” conteúdos até então relegados ao inconsciente e interditados à consciência; de súbito pareceu concretizar-se no mundo ao redor o pior que poderia haver no mundo interno, a aniquilação, o apocalipse. A clínica psicanalítica se fez presente nesta hora, tal qual um esteio, para organizar e ressignificar esse trânsito interno e externo, a tensão e confusão criadas neste trânsito quando o indivíduo se viu isolado, ameaçado e dentro de casa sozinho ou com seus familiares.

Há aqueles que questionam se a psicanálise de Freud ainda é útil na atualidade – afinal ela surgiu no final do século XIX -, se os conceitos freudianos se ajustam hoje em dia à prática clínica já que o mundo mudou, a tecnologia avançou, as sociedades evoluíram, etc. Em minha modesta opinião, a questão não se debruça tanto sobre ajustes e adequações, mas sim sobre o uso que fazemos do legado abundante que Freud construiu. Os conceitos de inconsciente/consciente, as dinâmicas psíquicas, o desejo, a libido e o papel fundamental dos sonhos são ferramentas atemporais da psicanálise.

Nós psicanalistas utilizamos tais instrumentos no trabalho clínico para auxiliar o paciente a trazer à consciência (à luz) aspectos do inconsciente para que ele assim ressignifique (ou signifique) a própria história. E por que é importante ressignificar a própria história? Porque, em poucas palavras, assim constituímos nossa identidade como indivíduo. E a experiência é singular; ou seja, os medos que a pandemia suscitou em João não são os mesmos que Marcelo, seu irmão morando na mesma casa, viveu durante este período, por exemplo. Um pode ter verbalizado o pavor; o outro o sentiu em silêncio.

Cada história se apresenta como ímpar e a percepção do mundo também o é. E essa é a beleza do trabalho clínico. Por isso, dizemos que cada pessoa que nos chega é um campo de exploração desconhecido, pois, de fato, nada sabemos da pessoa em questão e, de certa forma, começamos a escutá-la do zero.

Para Freud há uma linha divisória entre neurose e psicose e é importante compreender a construção deste pensamento, claro. No entanto, em se tratando de percepção de mundo, a pessoa pode oscilar e transitar entre aspectos neuróticos e psicóticos. Observo que em vários casos dissociativos que essa linha divisória torna-se turva, indefinida. E, mais uma vez, munidos desses conceitos freudianos fundamentais, o psicanalista pode se oferecer como mediador desses campos para auxiliar o paciente a nomear a experiência que ainda não tem nome e pertence à história (percepção) singular deste indivíduo.

Assim sendo cabe ao psicanalista (e podemos aplicar tal ideia a outras abordagens teóricas dentro da psicologia clínica) postar-se diante da história humana que a ele se apresenta sem utilizar os conceitos freudianos para enquadrar o paciente como um fenômeno classificatório e, simultaneamente, utilizar os recursos conceituais freudianos, no caso, para compreensão da dinâmica pessoal do paciente e apropriação de si.

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Foto: Pexels

Os ensinamentos de Freud não se tornaram remotos porque o mundo mudou, a meu ver. São sempre reatualizados no analista a cada questionamento ou dúvida que emerge do encontro clínico. É desprover-se do conhecimento para conhecer; é desconstruir para poder construir (ressignificar ou significar). A proposta é paradoxal e por isso a disponibilidade do analista é fundamental para o trânsito entre o nada e o tudo. É como se a pessoa estivesse sentada sob uma sombra, à penumbra de uma sala, e o analista ao lado dela se sentasse e acendesse um abajur para com ela explorar o que surge sob a luminosidade.

A consciência de si (iluminação) e o conhecimento da própria história são recursos que possibilitam a pessoa desejar e escolher a partir de si, ciente das circunstâncias ao redor. Do meu ponto de vista, é essa conquista que ampara o indivíduo em situações extremas, tal qual na pandemia, mesmo que de quando em quando ele titubeie.

*Paula Dias de Andrade Hilgeland é psicóloga e psicanalista

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