É comum encontrar análises que buscam responder se Freud estava certo ou errado em seus pensamentos e teorias. Mas a resposta é muito mais complexa do que sim ou não
Por Ana Carolina Pereira
A psicanálise, campo clínico de investigação teórica da psique humana, foi criada no século XIX a partir dos estudos do médico Sigmund Freud. Essa ciência se diferenciou de todas as pesquisas médicas da época e chocou ao trazer conceitos como o inconsciente — uma espécie de reservatório de sentimentos, pensamentos, impulsos e memórias que estão fora da percepção consciente — e a cura por meio da escuta.
O psicanalista Arthur Engel explica que a intenção de Freud, à época, era que a psicanálise fosse reconhecida como ciência, mas que suas descobertas foram para caminhos opostos. “A origem da ciência é buscar algo que possa ser observado e repetido em situações controladas. Na psicanálise, porém, eu posso repetir um mesmo experimento dez vezes e ter dez resultados diferentes, é impossível prever. E isso foi duramente criticado por ter sido apresentado no auge da razão”, diz.
As críticas à psicanálise, no entanto, não pararam por aí. É bastante comum, ainda hoje, se deparar com análises que se desafiam a chegar a uma resposta concreta: Freud estava certo ou errado? — ou, ao menos, que buscam entender quais de seus conceitos estão ultrapassados ou ainda fazem sentido nos dias atuais.
É preciso considerar o contexto
Para Danilo Marmo, psicanalista e docente do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e do Instituto Távola Santos e baixada santista, as críticas à psicanálise são sim necessárias e importantes. Mas, antes do apontar dos dedos, é preciso entender o contexto em que o pensador escreveu e deixou o seu legado.
“Freud era um médico judeu que atendia a burguesia vienense na virada de 1900, numa sociedade patriarcal e machista. Levando em conta esse contexto, entendemos que sua postulação sobre o Complexo de Édipo – essencial para a psicanálise até hoje – era literal demais: o homem da casa era o pai, a mãe era a mulher e todos tinham papéis e lugares definidos e encarnados nessas pessoas, a família nuclear clássica”, diz.
Com o passar de mais de cem anos, segundo o especialista, a literalidade do Complexo de Édipo não cabe mais. Outros autores, como o também conhecido Jacques Lacan, psicanalista francês, contribuíram atualizando o que se entende pelo Édipo, ao falar de funções e não de pessoas. Em Lacan, o pai é uma função, não é o homem da casa. A mãe não é a mulher do pai, é uma função, um lugar.
“A estrutura continua importante e determinante na constituição do sujeito, é daí que vai sair a estrutura neurótica, psicótica ou perversa – também delimitadas por Freud. Isso se vê todo dia na clínica, na própria análise, é algo que ninguém escapa. Mas a função paterna pode ser feita pela avó, pelo vizinho, por duas mães ou pelo pai. Do mesmo modo que esse lugar que a mãe ocupa na constituição do sujeito pode ser ocupado pelo pai adotivo, pela mãe, por uma irmã mais velha, pelo pai e assim por diante”.
Para Marmo, essa atualização proposta por Lacan pode ser considerada genial, pois não refuta a teoria do Complexo de Édipo como o núcleo das neuroses e o traz para os dias atuais, com fôlego suficiente para quaisquer montagens familiares que o futuro possa inventar.
Um autor à frente de seu tempo
O próprio Freud, como lembra a também professora do Instituto Távola e psicanalista, Marcella Prado, revisitou diversas vezes o seu próprio trabalho, em novas versões de seus textos e também em diversas notas de rodapé espalhadas pela sua obra, em que o autor muitas vezes discute com ele mesmo, sem vergonha de deixar claro que tal pensamento, antes dado como verdadeiro, não se provou correto com o passar do tempo.
“Ele foi extremamente generoso em se contradizer e revelar as mudanças para o leitor. E, de certa forma, acredito que é assim que deve ser. A psicanálise deve ser, de fato, sempre revisitada, ganhando novas abordagens e roupagens que sejam condizentes com os avanços que vivemos. Mas isso não quer dizer que Freud estava errado, e sim que a humanidade evoluiu, felizmente”.
Para a psicanalista Isabel Alencar Unikowsky, é correto, inclusive, afirmar que Sigmund Freud foi um autor à frente de seu tempo e o define como um homem que se colocou a escutar as pessoas que, na época, eram internadas em sanatórios pois na medicina tradicional não havia mais o que se fazer com suas dores e ataques de nervos.
Ela comenta a obra “A Moral Sexual Cultural e a Doença Nervosa Moderna”, de 1908, como um exemplo de seu pensamento moderno, considerado o contexto já mencionado. “Há momentos no texto em que ele sugere que um homem não se case com uma mulher que apresente doença nervosa, pois poderia piorar com o casamento. Quando li essa parte pela primeira vez, fiquei indignada. Mas seguindo com o texto e pensando no quanto as mulheres eram reprimidas sexualmente, no final, pra mim, o que Freud estava fazendo era um favor, pois ele sugere à mulher que se sentir doente dos nervos com o casamento, que procure um meio de liberar sua sexualidade”, diz.
O futuro da psicanálise
Ao mesmo tempo, obras como “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, lembradas por ambos Isabel Unikowsky e Arthur Engel, se mostram extremamente atuais. “O texto ‘Mal-Estar na Cultura’ também é indispensável. Os dois são excelentes para entender o mal-estar em nossa atualidade, o crescente aumento da polarização na política e o fanatismo e idolatria por figuras colocadas como o Ideal do Eu da massa. Outro texto ótimo para ser lido é o ‘Considerações Contemporâneas sobre a Guerra e a Morte’, em que ele fala sobre a ambivalência de sentimentos, sobre o bem e o mal que existem dentro de cada sujeito”, afirma.
É claro que as obras de Freud não se distanciaram da psicanálise, porque são a base fundadora desse campo, mas é um espaço que não só pode como deve ser ocupado por autores contemporâneos, de acordo com Marcella Prado.
“Freud fez sua parte, seu trabalho ainda é – e seguirá sendo – relevante e atual na clínica e agora cabe aos psicanalistas e estudantes de psicanálise chegarem a novas teorias, acrescentarem ideias e pensamentos a partir dos conceitos que já temos tão fixados”.
Danilo Marmo concorda e diz que é exatamente isso o que se espera da psicanálise daqui para frente: que ela consiga evoluir sem perder sua originalidade e potência. “A psicanálise não é adaptativa e não deixa as pessoas mais bem sucedidas – na escola, no trabalho ou na família. A psicanálise abre espaço para a singularidade de cada um. Portanto, que ela siga sendo a difícil arte de verdadeiramente escutar o que cada um tem a dizer sobre si, seus desejos, e seu ser, ou como diria Lacan, seu des-ser”, conclui.