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Os “eus” que habitaram o cinema de grandes autores em 2022

A autoficção foi a plataforma de alguns dos mais renomados cineastas em 2022 e na 5ª edição da newsletter de Cinema, foi objeto de análise da jornalista Jéssica Stuque. Assine nossas newsletters

Por Jéssica Stuque

Eu poderia estar matando a mãe (como Xavier Dolan) ou roubando uma máquina de escrever (como o jovem Antoine de Truffaut), mas estou aqui a esmerar possíveis elos entre grandes autores do cinema que se enveredaram pelos múltiplos terrenos da autoficção. 

Palavrinha em voga essa, principalmente depois que três obras ganharam atenção da crítica:

– “The Fabelmans”, de Stephen Spielberg;

– “Bardo: Falsas Crônicas de Algumas Verdades”, de Alejandro G. Iñarritu;

– “Armageddon Time”, de James Gray.

O gênero – se é que podemos chamá-lo assim – não nasceu hoje, mas é ao menos curioso que três grandes diretores tenham se embrenhado por ele ao mesmo tempo. 

  •  Seria a autoficção um bom negócio para a indústria cinematográfica que tenta resistir à pasteurização do streaming?
  • Ou estaríamos todos nós, como humanidade, passando por momentos mais reflexivos e nostálgicos pós-pandemia?
  • Será este um momento em que o narcisismo impulsionado pela hiper exposição midiática se vulnerabiliza no processo de se criar e se contar nas histórias?
  •  Ou seria apenas mais uma linguagem a ser explorada pela sétima arte?

Exercitando o meu eu autora-jornalista-cinéfila já me antecipo em dizer que não responderei a essas perguntas. Mas jogarei luz a essa discussão ao passo em que também brinco de costurar percepções sobre as recentes obras mencionadas. Tudo isso acrescido de uma pitada novellevaguesca de Truffaut e irreverência de Dolan. 

O ensaio a seguir contém spoilers.

Metáfora x memória na obra de Spielberg

Começando pelo provável favorito ao Oscar 2023… 

Muito tem se falado sobre o quanto “The Fabelmans” é a obra mais pessoal de Spielberg.

No filme, ele revisita sua infância e adolescência, desde o momento em que descobre a sua paixão pelo cinema até quando decide viver disso. E ainda se despe ao abordar os conflitos do jovem Sammy (seu alter ego) em meio aos segredos da família Fabelman, que num primeiro momento parece perfeita para um comercial de margarina até que se prove o contrário. 

Mas o que significa dizer que é a sua obra mais pessoal?

Não dá para dizer que os outros filmes de Spielberg não foram pessoais. Sabemos pela sua extensa filmografia que ele coloca o seu olhar em tudo o que faz. E não apenas ele. 
Paul Schrader, autor de Taxi Driver, compartilha da opinião que “toda obra é um problema da vida transformada em metáfora”.

A diferença em “The Fabelmans”, segundo o próprio Spielberg comentou em entrevista, é que dessa vez “não foi sobre metáfora, mas sobre memória”.  E isso influenciou todo o processo criativo do filme, desde a escrita até a filmagem no set. Não é à toa que um recado de Spielberg antecede a exibição do filme na sala de cinema. No vídeo, ele conta o quanto fazer o filme foi importante para ele. 

“That should be a movie”

Foi junto a Tony Kushner que Spielberg se viu aberto para se abrir e contar a suas memórias. Ele costumava contar histórias de sua infância ao colega de trabalho de longa data, ao que ele respondia: “that should be a movie”. O diretor decidiu, então, fazer o filme.

Seu ponto de partida foram as memórias, e ele se encarregou de recriar cenas e cenários que realmente existiram. Como seus pais já não estão mais vivos, recorreu às irmãs para completar as lacunas que faltavam. 

Um dos cenários praticamente todo recriado foi a casa em que morava na sua infância. Tudo estava tão parecido que, em dado momento, nas filmagens o diretor olhou para a atriz Michelle, que usava as réplicas das roupas de sua mãe e…

“...foi um daqueles momentos ‘fora do corpo’ em que você vê tudo em câmera lenta. Eu não vi Michelle nem Paul, eu vi minha mãe e meu pai. Eu fiquei perdido (…) Eles vieram até mim e me abraçaram.”

(Steven Spielberg)

Ali começou uma amizade. E ele se viu tendo que estabelecer outro tipo de relação com o elenco. Afinal, as próprias funções se misturavam. Não era apenas o diretor, mas o diretor-autor. 

“Eu queria manter uma relação doutor-paciente com o elenco, mas era difícil porque a história ficava me lembrando de memórias reais, recriando coisas que aconteceram comigo e ver isso na minha frente foi uma experiência muito estranha. Nunca passei por nada parecido, mas que bom que eu fiz!”, revelou Spielberg em entrevista.

O onírico de Iñarritu

Recriar exatamente o mundo da época usando fotos e filmes da sua infância foi uma escolha de Spielberg, conhecido pelo seu realismo extraordinário. Tal característica tem inclusive mais paralelos com a autobiografia do que com a ficção. 

Iñarritu, no entanto, vai por um caminho totalmente diferente. Em “Bardo: Falsas Crônicas de Algumas Verdades”, o realismo pouco importa. A lógica pouco importa. O que importa é o sentir.

As primeiras cenas já evidenciam se tratar de um universo de sonhos, de sensações, o mundo interior de um personagem (Silverio Gama) que não é um espelho exato do diretor, mas que tem pontos de conexão com ele. 
 

“Eu sei do que ele fala e o que está sentindo”, conta o diretor em entrevista.

Iñarritu não tenta recriar as memórias, que segundo ele carecem de verdade. Mas parte da emoção que elas trazem para compor seu mosaico de sonhos, frustrações, culpas, medos e reflexões, em formas de crônicas.

A comédia nostálgica mergulha nas feridas de um documentarista mexicano que vive nos Estados Unidos há cerca de 20 anos e volta ao seu país para ganhar um prêmio. É quando ele tem que lidar com relacionamentos antigos e revisitar as suas memórias, muitas vezes doloridas.

Catarse libertadora

Na mesma entrevista, Iñarritu revela que fez o filme tinha uma demanda interna de lidar com esses sentimentos que se apoderaram dele. Foi uma forma de liberá-los. 

Seu processo envolveu acessar intimamente as emoções e inseri-las no personagem fictício a ponto de poder olhar para tudo com humor e rir da dor.

Dor esta que é compartilhada com milhares de imigrantes mexicanos pelo mundo. E é assim que seu filme vai do íntimo ao épico, imitando o que já sabemos: que ao abordar profundamente o que há de mais particular, alcança-se o universal.

A máquina do tempo criada por James Gray

Assim como Spielberg, James Gray se lançou à experiência de fazer um filme que mimetiza a sua infância. Na figura do pequeno Paul Graff, o diretor revive seus tempos de estudante em uma escola do Queens e de filho em uma família de judeus vinda da Europa que busca concretizar o sonho americano.

Uma de suas motivações ao tomar esse ponto de partida para o filme foi a melancolia que lhe abateu quando revisitou o lugar onde morou com os filhos. Apossado da nostalgia dos tempos que viveu ali e tendo já partido sua mãe, avôs e avós, ele decidiu materializar aqueles momentos novamente. Fazer Paul vivê-los em cena foi uma forma de criar uma máquina do tempo.

Fotos: divulgação

A decisão de falhar

A dor de Gray é retratada, por escolha do diretor, como uma espécie de conformação, o que fez muitos espectadores ficarem desgostosos. 

Gray não quis contar mais uma história de sucesso, de um garoto que se transforma praticamente em um “super heroi”, como fazem magicamente os filmes. E o motivo , segundo ele nesta entrevista, foi ser honesto consigo mesmo e com o que ele viu na infância. 

Uma honestidade possível

Assistindo a todos os diretores falarem sobre suas obras, notei que uma palavra em comum os conectava: honestidade.

Em Spielberg, pela franqueza e vulnerabilidade no compartilhamento das suas histórias; em Iñarritu, por evocar as emoções que estão coladas às suas memórias; em Gray, em suas próprias palavras, “por dar uma forma mais honesta e menos açucarada” à realidade de um garoto que viveu em tais condições no Queens. 

Não cabe aqui julgar a veracidade de tais menções. Afinal, a tal veracidade também pode ser construída discursivamente. O que me parece pungente é entender a honestidade como uma espécie de abertura e de nudez de si mesmos. Uma sensação que os três parecem compartilhar.

Intersecções

Não, a autoficção no cinema não é de hoje. 

Podemos encontrá-la já em “Os incompreendidos” (1959), de François Truffaut. No filme, seu alterego infanto-juvenil é expressado pelo personagem Antoine Doinel, um jovem parisiense que não se encaixa nos padrões dos grupos que frequenta e acaba fugindo de seus agressores. 

Cinquenta anos depois, em 2009, foi a vez do diretor canadense Xavier Dolan, em “Eu matei a minha mãe”, vestir as funções de autor, diretor e ainda ator.  O filme conta a história de um adolescente de 17 anos de idade que vê a mãe com desprezo. E o principal recurso do diretor é a exposição de si mesmo, usando inclusive referências extra fílmicas como entrevistas à imprensa, making of e redes sociais para aludir à história.  

Hipermidiatização

Estamos todos imersos em uma cultura de hipermidiatização. Somos impulsionados pelo exibicionismo que as redes sociais premiam, criamos autoficções em nossas redes sociais, vemos possibilidades de negócio existentes na mercantilização da própria imagem. 

Seriam esses tempos favorecedores do aparecimento e desenvolvimento de autoficções?

Terreno para o híbrido

No geral, entende-se a autobiografia como uma escrita a partir de fatos que “realmente” aconteceram, ao passo que na ficção seria tudo inventado. 

Ainda que essas denominações e explicações sejam reavaliados e questionadas de tempos em tempos, podemos entender que a autoficção ficaria num terreno híbrido. Um terreno que possibilita que o próprio autor se crie e recrie. 

Autoficcionar é abrir espaço para se reconhecer no campo da performance. Para descobrir um novo eu no “working progress”’. É brincar com as barreiras do que é verdadeiro e do que é criado, assim como muitas vezes nós mesmos fazemos em nossas redes sociais.

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