Tom Leão
Há aquela máxima que diz que devemos separar o artista e sua arte da pessoa, que, às vezes, pode ser alguém decepcionante. Podemos dizer algo parecido sobre o filme “O Aprendiz” (‘The Apprentice’), que mostra um recorte da vida do odioso Donald Trump, quando este ainda era jovem, estava começando o seu império, e teve como mentor, o ladino advogado Roy Cohn (1927-1986). Apesar de a figura enfocada não ser querida por muitos, o filme é cativante e, sobretudo, os atores são muito bons. E ficamos sabendo de onde foi que o atual e ex-presidente americano tirou o seu jeito de ser: Roy Cohn era a verdadeira encarnação do diabo na terra, com seu jeito Mefisto.
É justamente na fotografia, nas atuações e na composição dos personagens (maquiagem, perucas, etc), que está o melhor do filme. Sebastian Stan (Buck, o Soldado Invernal, dos filmes do Capitão América) está irretocável como Trump, sem jamais soar caricato ou em tom de paródia. Os trejeitos, o tom de voz, o biquinho, está tudo lá. Impressionante. Mais impressionante ainda está Jeremy Strong (um dos herdeiros Roy, da série ‘Succession’, do HBO), como o demoníaco advogado Roy Cohn. Tanto que, na primeira parte do filme, Strong/Cohn rouba a cena, quase sendo o protagonista da ação. Até porque, o pêndulo da trama está na dinâmica de professor e aprendiz, de Cohn e Trump. O advogado, já era um cara famoso e experiente (condenou o casal Rosemberg, defendeu Nixon, trabalhou pro McCarthy!) e dado a uma vida desregrada, com sexo gay e drogas, enquanto Trump era quase um caipirão, que não bebia, não fumava, não tomava drogas, era apenas ambicioso.
Como pano de fundo, quase que como um fascinante personagem coadjuvante da trama, temos a Nova York decadente de meados dos anos 1970 a finais dos 80s (em sua fase mais decadente e fascinante, praticamente uma Nova Sodoma) que dá o toque final, com a Rua 42 e seus cinemas pornôs, prostitutas e traficantes, o alto consumo de cocaína, a chegada da aids numa cidade à beira da falência, as noitadas no Studio 54 e festinhas de embalo, com direito a figurinhas carimbadas da época, como o onipresente artista plástico Andy Warhol, que, indagado por Trump, numa destas festinhas na casa de Cohn (repleta de rapazes musculosos), sobre quem é, e o que faz, diz: transformo arte em dinheiro.
Por causa do clima e da época, a trilha sonora é importante nas ‘viradas de capítulo’. Ela vai do punk/new wave das bandas Consumers (‘anti anti anti’) e Suicide (a incrível ‘Ghost Rider’, que toca numa cena de orgia e combina perfeitamente com o clima), além de muita disco music daquele momento no 54. Como o mega hit ‘Rock your baby’, de George McRae; ‘I´m your Boogie Man’, de KC & The Sunshine Band; até fazer a ponte com o novo som dos anos 80, através do synth pop de Pet Shop Boys, com ‘Always on my mind’, e o electro-techno do New Order com ‘Blue Monday’, a divisora de águas das pistas de dança.
Contudo, a música que fica em nossas cabeças, é a versão original para o hit euro disco brega ‘Yes Sir, I can boogie’, da dupla espanhola Baccara (regravada até pela Sophie Ellis-Bextor). É o tema que acompanha Maria Bakalova (revelada no segundo filme do Borat), que faz a ambiciosa tcheca Ivana Trump, a primeira esposa do magnata. Ela dá o toque final, com sua cafonice e sotaque. Bakalova, emociona numa cena de estupro (que quase fez o filme ser proibido pelos Trump). Assim, por mais que você não goste dos personagens, o filme em si é interessante, pela sua linguagem adulta (como faz falta hoje em dia) e o painel de época, com sua trilha sonora, e a cidade como parte importante. Incrível que o diretor seja o iraniano Ali Abbasi, dos ótimos ‘Holy Spider’ e ‘Border’. Ele captou direitinho a parada, mesmo não sendo americano e nem tendo vivido aquela época (nasceu em 1981), e momento.