Redação Culturize-se
Nos últimos anos, a relação entre mídia e grandes empresários tem sido uma constante nas discussões sobre o futuro do jornalismo. Recentemente, Jeff Bezos, dono do Washington Post, gerou polêmica ao impedir que o jornal apoiasse candidatos presidenciais nas eleições de 2024, interrompendo uma prática comum nos EUA, especialmente em jornais com tendências ideológicas conhecidas. Tradicionalmente inclinado ao Partido Democrata, o Post já havia endossado candidatos do partido no passado. A decisão causou alvoroço, gerando perdas de assinaturas e críticas de leitores e ex-colaboradores. Com o posicionamento de Bezos, surgem questionamentos sobre a influência de bilionários na imprensa e o impacto disso na credibilidade do jornalismo.
Bezos justifica sua decisão apontando para a “crise de credibilidade” da mídia, defendendo que o fim do endosso de candidatos pode ajudar a recuperar a confiança do público. Em seu editorial, “A dura verdade: os americanos não confiam na mídia”, ele argumenta que a percepção de viés compromete a independência jornalística e alimenta uma desconfiança generalizada. Segundo ele, é comum que eleitores considerem as opiniões editoriais enviesadas, questionando se elas realmente influenciam as escolhas nas urnas. Para Bezos, o Washington Post deve se abster de endossar candidatos como um princípio, pois acredita que tal medida fortalecerá a confiança dos leitores.

Contudo, o posicionamento do empresário foi rapidamente criticado. O ex-editor do Post, Marty Baron, classificou a decisão como “covardia” e alertou que a democracia seria a principal vítima dessa escolha. Baron e outros críticos argumentam que, ao evitar apoiar candidatos, o Post falha em assumir uma posição em um momento crucial, quando as divisões políticas ameaçam polarizar ainda mais a sociedade. Em resposta à decisão, milhares de assinantes manifestaram sua insatisfação, alguns cancelando a assinatura em protesto contra a postura do jornal.
O contexto dessa decisão envolve também o histórico de Bezos e seus interesses comerciais. Como fundador da Amazon e da Blue Origin, o empresário está exposto a possíveis conflitos de interesse. Em um trecho do editorial, ele mesmo admite que pode não ser o “proprietário ideal” para o Washington Post, devido às inúmeras reuniões que suas empresas mantêm com o governo. Bezos reconhece que sua posição pode ser interpretada de duas maneiras: ou como uma barreira contra pressões externas ou como uma “teia de interesses conflitantes”. Ele, no entanto, desafia os leitores a encontrar um único caso em que tenha influenciado o jornal em favor de seus próprios interesses comerciais.
Essa relação entre a mídia e interesses empresariais não é exclusiva dos Estados Unidos. No Brasil, por exemplo, o jornalismo enfrenta desafios semelhantes. Empresários com laços estreitos com o governo frequentemente utilizam seus veículos para promover narrativas alinhadas ao poder, beneficiando-se de contratos públicos e patrocínios estatais. Esse contexto favorece a formação de um ambiente jornalístico cada vez mais dividido, onde veículos alinhados a correntes ideológicas dominam os espaços de rádio e televisão, enquanto outros, excluídos do financiamento público, concentram-se em canais digitais. Essa ocupação majoritária da mídia brasileira por grupos de interesse específicos contribui para a desconfiança dos leitores, que veem na imprensa mais uma ferramenta de propaganda do que um canal independente.
Essa crise de credibilidade não é um problema exclusivo do Washington Post ou do Brasil. É uma questão generalizada, e Bezos identifica isso ao afirmar que o problema se estende a outros jornais, que, por sua vez, enfrentam um público cada vez mais cético e desconfiado. Em seu editorial, Bezos lamenta que o jornalismo se concentre em uma “certa elite” e, consequentemente, não dialogue mais com a maioria das pessoas. Ele observa que a mídia tradicional, ao ignorar a perda de credibilidade, corre o risco de se tornar obsoleta, como se estivesse operando em um “piloto automático” rumo à irrelevância.
A questão central, então, é: a abordagem de Bezos realmente promove uma visão neutra e confiável, ou serve apenas para alienar um público cada vez mais polarizado? O professor e crítico de mídia Jay Rosen explica que a neutralidade absoluta pode ser contraproducente. Em seus estudos, Rosen desenvolveu o conceito de “visão de lugar nenhum”, uma postura jornalística que tenta evitar posicionamentos claros. Segundo ele, essa postura não necessariamente gera confiança; em vez disso, reforça a imagem de um jornalismo distanciado, que evita tratar das questões centrais e das verdadeiras preocupações do público.
Para Rosen, a objetividade não implica a negação de perspectivas, mas sim a transparência. Ao adotar uma posição clara, um jornal não está apenas oferecendo uma opinião, mas demonstrando compromisso com a verdade. A “visão de lugar nenhum” trataria a parcialidade como uma falha, mas, para ele, expressar uma opinião após uma investigação rigorosa aumenta a credibilidade do veículo.
A questão é ainda mais evidente quando olhamos para as mudanças nas preferências do público ao longo dos anos. No início dos anos 2000, o surgimento dos blogs, conhecidos pelo estilo opinativo e pessoal, abriu um novo caminho para o jornalismo. Blogueiros criaram vínculos diretos com seus leitores, ganhando confiança pela autenticidade. A mídia tradicional, que inicialmente desacreditava esses novos formatos, precisou se adaptar e aceitar que o público valorizava a transparência e o engajamento direto, mesmo quando isso significava assumir uma posição.

A “visão de lugar nenhum” distancia a mídia da realidade, criando uma ilusão de imparcialidade que o público já entende como falsa. Como explica Rosen, os leitores de hoje não esperam que os jornalistas sejam desprovidos de opiniões; eles esperam, isso sim, que sejam honestos sobre elas. A tentativa de Bezos de evitar endossos pode ser interpretada como um retrocesso, já que ignora a compreensão moderna de que a transparência é essencial para a construção da confiança no jornalismo.
Posicionar-se ou não: eis a questão!
Outro fator é o crescente papel das redes sociais e da mídia digital, onde a conexão direta e o engajamento são fundamentais. Figuras públicas e influenciadores nas redes estabelecem relacionamentos profundos com seus seguidores, cultivando a fidelidade a partir de narrativas emocionais. Nesse cenário, veículos de imprensa que se distanciam dos leitores e evitam posicionamentos claros correm o risco de perder relevância. A falta de engajamento com o público não apenas prejudica o jornalismo tradicional, mas também alimenta o crescimento de fontes alternativas, muitas vezes pouco confiáveis, que se aproveitam da lacuna deixada pela grande mídia para espalhar desinformação e teorias da conspiração.
Essa falta de posicionamento e engajamento abre espaço para que movimentos políticos e sociais explorem a narrativa pública de forma unilateral. Nos Estados Unidos, por exemplo, redes sociais tornaram-se palco de teorias da conspiração e desinformação, com figuras políticas influentes amplificando essas narrativas. No Brasil, veículos de direita e esquerda sem compromisso com o rigor jornalístico se proliferam e registram engajamento recorde.
Diante dessa realidade, o Washington Post enfrenta um grande desafio. Se Bezos mantiver sua postura de evitar endossos, corre o risco de afastar leitores que esperam um jornalismo engajado e transparente. Hoje, o jornalismo bem-sucedido é aquele que vai além da neutralidade, criando laços de confiança com o público e promovendo um diálogo franco sobre os temas de interesse da sociedade. Bezos terá que decidir se o Post quer ser um veículo que evita riscos ou um que enfrenta os desafios do jornalismo moderno, sendo verdadeiro e próximo do seu público.