Tom Leão
O thriller erótico de 1984 de Brian De Palma, “Dublê de Corpo” (Body Double, no original), foi visto por muitos na época como uma provocação deliberada — um nariz torcido para os comentaristas que chamaram seu trabalho de misógino e sádico. Por isso, ganhou da MPAA (Motion Pictures Associated of America, que classifica os filmes nos EUA) um X (proibido para menores, como em filmes pornográficos). De Palma cortou um dobrado até chegar na versão R rated aceitável. E valeu à pena.
O filme, que hoje é considerado o seu melhor (o diretor está com 84 anos), está saindo em uma edição especial em 4K para comemorar o seu 40º aniversário, é extremo de todas as maneiras: é sangrento, violento, sexy, estilizado, ridículo, e, de alguma forma, é impossível de levar muito a sério. Também é uma obra-prima, o que seria uma surpresa para os críticos e o público que o rejeitaram durante seu lançamento: o filme fracassou nas bilheterias (assisti numa sessão vazia, num cinema hoje extinto, em Ipanema, adorei); De Palma foi indicado ao Framboesa de Ouro de Pior Diretor, e até Pauline Kael (decana crítica de cinema do ‘The New York Times’), uma defensora de longa data dele, achou ‘uma terrível decepção’. Olhando para trás agora, De Palma disse: ‘Você sempre é julgado pelo estilo do dia, mas às vezes o estilo do dia não é a maneira certa de avaliar algo inovador’. O tempo, sempre vinga.
Na verdade, “Dublê de Corpo” é o tipo de filme que só poderia funcionar nas mãos de De Palma. É um thriller completamente envolvente, cheio de cenários artificiais e coreografados a serviço de uma história absurda. Num mix de clássicos de Hitchcock, como “Vertigo” e “Janela Indiscreta”, a trama segue um ator claustrofóbico desempregado (Craig Wasson) que pega sua namorada adúltera no flagra (primeira aparição nas telas de Barbara Crampton, que viraria musa do cinema de terror em filmes como “Re-Animator” e acaba tomando conta (a pedido de um conhecido) de um apartamento que parece a casa dos Jetsons (ele realmente existe) em Hollywood Hills.
Lá, ele fica obcecado por uma mulher misteriosa, que mora num prédio do outro lado da rua, que dança, eroticamente, toda noite, no mesmo horário (aqui, temos os toques de “Janela indiscreta”). A série insanamente bizarra de eventos que se segue, joga nosso herói no meio da indústria pornográfica dos anos 1980 (ou pelo menos uma versão caricatural dela), onde ele então se apaixona por Holly Body (Melanie Griffith, no papel que a revelou, e um dos melhores de sua carreira, se não o melhor; no qual foi ensaiada pela veterana porn star Annette Haven, que aparece no filme, numa cena rápida), uma artista que pode ou não ter uma conexão com aquela mulher na janela.
O protagonista se apaixona por uma mulher que ele só vê através de um telescópio enquanto ela dança, com o rosto na penumbra (ao som de uma música marcante). O que o transforma em um stalker. Ele é, na verdade, um substituto perfeito para o público — um voyeur que cada vez mais tem dificuldade em dizer a diferença entre os filmes e a realidade, um limite que o filme de De Palma passeia muitas vezes.
Bem no meio do filme, nosso herói (que tem claustrofobia, um contraponto à vertigem de James Stewart, em “Vertigo/Um corpo que cai”, filme que BDP já havia emulado em “Trágica obsessão”, 1976, que tem trilha de Bernard Herrmann, de ‘Vertigo’) acaba no meio de um videoclipe para ‘Relax’, da banda inglesa Frankie Goes to Hollywood (a parte em que o filme sofreu mais censura; em alguns países, nem há essa cena completa), uma sequência maravilhosamente kinky, que é praticamente inexplicável, mas parece muito com os filmes anteriores e mais experimentais de De Palma.
Nota: De Palma fez, depois, o videoclipe para ‘Dancing in the dark’, de Bruce Springsteen, com Courtney Cox (que iria se tornar popular em ‘Friends’) e, até hoje, a cena em que Bruce puxa a garota para o palco (ideia de De Palma) é repetida nos shows. “Body Double” é cult hoje. Mas, é o tipo de filme que ninguém poderia fazer hoje. Por isso, aproveite enquanto ele está no catálogo do streaming Max, sem cortes. Revi, mais de 30 anos depois, e foi como a primeira vez: provocante!