Redação Culturize-se
Florentina Holzinger, artista performática conhecida por sua abordagem vanguardista e provocadora, voltou a gerar controvérsias em 2024 com sua adaptação radical da ópera Sancta Susanna, de Paul Hindemith. Apresentada na Staatsoper Stuttgart, na Alemanha, a performance levou a uma série de reações intensas do público, com relatos de desmaios, vômitos e estados de choque entre os espectadores. A obra, marcada por sua ousadia visual e cenas perturbadoras, reacendeu debates sobre os limites da arte e a representação de temas como espiritualidade, sexualidade e violência no palco.
A montagem de Holzinger vai além da ópera de um ato originalmente composta por Hindemith em 1921. “Sancta”, como foi nomeada a nova versão, incorpora elementos da liturgia católica, performances ao vivo de acrobacias e coreografias aéreas, além de uma trilha sonora que mistura composições de Bach, Rachmaninoff e Gounod com sons contemporâneos. A obra explora o conflito entre a repressão religiosa e o desejo erótico, usando a figura da freira Susanna, que se despedaça entre seus votos de castidade e suas fantasias eróticas sobre Cristo. Ao adaptar essa trama, Holzinger recria o que ela define como um “ritual sagrado”, desafiando as convenções operísticas e criando uma performance multidimensional que questiona fé, dor e sexualidade.
A produção de Holzinger, no entanto, não se limita ao texto de Hindemith. Em sua interpretação, a diretora eleva a narrativa com a introdução de elementos inesperados, como uma rampa de skate, um braço robótico e cenas de nudez explícita. As imagens viscerais e chocantes incluem perfurações corporais ao vivo, sangue real e falso, além de atos sexuais não simulados. Esse tipo de abordagem, característico do trabalho de Holzinger, visa confrontar o público e forçá-lo a refletir sobre o desconforto causado pela exposição de corpos femininos, violência e símbolos religiosos. Em Stuttgart, as reações do público foram variadas, com algumas pessoas se retirando da sala e outras exigindo assistência médica após se sentirem mal.
Ao longo de sua carreira, Holzinger construiu uma reputação de desafiar as normas sociais por meio da arte performática. Sua abordagem transgressora é especialmente visível em “Sancta”, onde a nudez feminina não é apenas um artifício provocativo, mas uma ferramenta para desconstruir a visão tradicional e masculina da mulher. Andrea Baker, que interpreta a Irmã Klementia na peça, destaca que a perspectiva feminista de Holzinger rompe com a objetificação voyeurista dos corpos femininos, promovendo uma visão de poder e autonomia. A lente de Holzinger, portanto, não apenas retrata as mulheres como objetos de desejo, mas como sujeitos ativos que desafiam as normas de gênero e sexualidade.
A decisão de encenar “Sancta” em Stuttgart, uma cidade localizada em uma região da Alemanha onde partidos políticos de extrema-direita têm significativa influência, intensificou o impacto da performance. Com seu tratamento irreverente de símbolos cristãos e a representação explícita de temas considerados tabus, como a repressão sexual e a libertação feminina, a peça atraiu críticas de setores conservadores. No entanto, Holzinger se manteve firme em sua visão, argumentando que o papel da arte é justamente o de desafiar convenções e abrir espaço para o debate.
Esse tipo de provocação, no entanto, não é novidade para “Sancta Susanna”. Quando estreou em Frankfurt, em 1922, a ópera de Hindemith foi recebida com indignação, especialmente por seu retrato provocativo de uma freira que se despia diante de um crucifixo em um ato de desespero erótico. A obra foi acusada de blasfêmia e considerada uma afronta às sensibilidades religiosas da época. A Liga Católica de Mulheres de Frankfurt chegou a exigir que a ópera fosse retirada de circulação. Hindemith, então um dos principais expoentes da música expressionista na Alemanha, pretendia que sua ópera fosse perturbadora, e seu escândalo inicial apenas solidificou sua reputação como um artista à frente de seu tempo. No entanto, anos mais tarde, o próprio compositor se distanciou de “Sancta Susanna”, proibindo novas apresentações da obra em 1934.
A adaptação de Holzinger em 2024 traz à tona a relevância contínua dos temas explorados por Hindemith. Embora a sociedade tenha mudado significativamente desde a década de 1920, questões como a repressão sexual e os conflitos entre corpo e alma, ainda permeiam o debate cultural. Holzinger amplia essas discussões ao incorporar uma estética contemporânea que mistura tecnologia, coreografia e música em uma narrativa que força o público a confrontar seus preconceitos sobre fé e moralidade.
Apesar das críticas, a produção recebeu o apoio de algumas figuras influentes, como o secretário de Cultura de Baden-Württemberg, Arne Braun, que defendeu a liberdade artística de abordar questões controversas no palco. Para Braun, a arte deve ser um espaço de experimentação e questionamento, onde temas como fé, sexualidade e o papel dos gêneros possam ser explorados sob novas perspectivas. “Essas questões precisam ser tratadas sempre de novas formas”, comentou Braun, destacando a importância de manter o palco como um espaço de liberdade criativa.
A Igreja Católica, por outro lado, se manifestou contra a montagem de “Sancta”. O teólogo vienense Jan-Heiner Tück criticou a obra por sua abordagem “simplista” ao retratar freiras que rompem os muros do mosteiro em busca de libertação sexual. Para Tück, essa narrativa reproduz clichês que reduzem a complexidade da fé e da sexualidade em contextos religiosos.
Apesar das controvérsias, a encenação de “Sancta” de Florentina Holzinger não passou despercebida, e continua a atrair o interesse de público e crítica em toda a Europa. A mistura de performance audaciosa, crítica feminista e elementos visuais radicais garantiu que a obra se tornasse um dos eventos teatrais mais comentados de 2024. Ao reviver uma peça que já era controversa em sua origem, Holzinger não apenas desafia as convenções da ópera tradicional, mas também lança luz sobre as tensões culturais e sociais que continuam a moldar nossa compreensão do corpo, da fé e da arte.