Redação Culturize-se
A sociedade contemporânea, marcada por abundância material e opções ilimitadas de lazer e entretenimento, enfrenta um paradoxo intrigante: apesar de vivermos em uma era de excessos, muitas pessoas experimentam sentimentos profundos de insatisfação, ansiedade e depressão. Esse fenômeno, descrito pela psiquiatra Anna Lembke como o “Paradoxo da Abundância”, reflete uma realidade na qual o excesso de escolhas e estímulos prazerosos leva a uma diminuição do bem-estar geral. A partir das suas palestras e escritos, como o livro “Nação Dopamina“, Lembke discute como o sistema de recompensa cerebral é impactado pela superabundância moderna e o papel da dopamina na perpetuação de vícios em comportamentos que vão muito além do uso de substâncias ilícitas.
Em uma palestra realizada neste mês no ciclo Fronteiras do Pensamento, sediado na Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo, Lembke explorou os mecanismos biológicos e psicológicos por trás do vício e como esses se relacionam com a estrutura social da modernidade. A psiquiatra explicou que a dopamina, neurotransmissor responsável pela sensação de prazer e motivação, é fundamental para a busca de recompensas e para a maneira como lidamos com o desejo. No entanto, o problema surge quando o cérebro, em busca de homeostase — um estado de equilíbrio interno —, enfrenta dificuldades para voltar ao normal após picos de prazer. Como resultado, “quando acontece uma exposição repetida, o pico de dopamina é cada vez menor, mas o déficit de dopamina é maior”, afirmou Lembke. Isso leva à busca compulsiva por novas fontes de prazer, criando uma espiral de dependência.
Um dos pontos mais relevantes da palestra foi o conceito de que o vício não se limita apenas a substâncias como drogas, álcool ou tabaco. Na sociedade moderna, a tecnologia, redes sociais, jogos e até mesmo comportamentos considerados saudáveis, como exercícios físicos, podem se transformar em vícios quando utilizados de maneira compulsiva. Lembke destacou: “Vivemos em um mundo que esgota a produção endógena da dopamina, pois somos bombardeados por estímulos. Por isso, é difícil se livrar de vícios”. Essa sobrecarga de estímulos faz com que nosso cérebro sofra um desequilíbrio constante, resultando em uma necessidade contínua de compensação, o que pode se manifestar em formas prejudiciais.
O Paradoxo da Abundância se refere justamente a essa dinâmica: em um mundo onde há uma infinidade de opções e uma oferta ininterrupta de prazer, as pessoas tendem a se sentir mais insatisfeitas do que em sociedades com menos recursos. Isso ocorre porque, à medida que os estímulos prazerosos se tornam mais acessíveis, há uma dessensibilização dos receptores de dopamina no cérebro. Com isso, é necessário um número maior de estímulos, ou estímulos cada vez mais intensos, para alcançar o mesmo nível de satisfação. Esse fenômeno, identificado por Lembke, explica em grande parte a crise de saúde mental que se intensifica nas sociedades modernas e desenvolvidas.
Além disso, o excesso de opções também pode gerar a chamada “paralisia da escolha”. Com tantas possibilidades disponíveis, as pessoas podem se sentir sobrecarregadas e indecisas, levando a um aumento da ansiedade e da insatisfação. Nesse sentido, Lembke propõe uma reflexão sobre a necessidade de moderação e de reconexão com formas mais simples e significativas de prazer. “O caminho para uma vida mais satisfatória pode não estar na busca incessante por mais, mas sim no cultivo da moderação, da gratidão e da capacidade de encontrar satisfação em experiências mais simples e significativas”, ressalta.
Essa reflexão ganha ainda mais relevância quando consideramos o impacto social e cultural desse paradoxo. Em países desenvolvidos, onde a riqueza material e o tempo livre são mais abundantes, as taxas de depressão e insatisfação são surpreendentemente altas. A psiquiatra observou que, nessas sociedades, até atividades tradicionalmente saudáveis, como a prática de esportes ou a alimentação equilibrada, podem se transformar em vícios prejudiciais quando perseguidas de forma compulsiva. Ela afirmou: “Não se trata de uma questão só individual, mas também social. E que terá de ser tratada por muitos séculos. O vício é a peste moderna”.
Ao discutir possíveis soluções, Lembke apontou a importância da prevenção e de uma abordagem equilibrada no uso de substâncias e comportamentos que estimulam a liberação de dopamina. Uma das estratégias sugeridas é o “jejum de dopamina”, uma prática que envolve a redução ou eliminação temporária de estímulos prazerosos, como o uso de tecnologia, para permitir que o cérebro se reequilibre. Essa técnica pode ajudar as pessoas a restabelecer sua capacidade de sentir prazer de forma saudável, reduzindo o impacto da exposição constante a estímulos intensos. Lembke argumentou: “Devemos prevenir nossos cérebros de substâncias viciantes, inclusive sobre o uso de celular”.
Outro ponto crucial é a substituição de comportamentos viciantes por hábitos mais saudáveis, que não desencadeiem a mesma resposta compulsiva do sistema de recompensa cerebral. Ela destacou que a moderação é chave para evitar que atividades potencialmente inofensivas se transformem em fontes de dependência. “É importante falar sobre moderação. Algumas drogas não vamos conseguir nos abster, como a tecnologia, por isso precisamos saber como utilizá-la de maneira responsável”, concluiu.
Esse raciocínio de Lembke traz à tona questões importantes sobre como moldamos nossa relação com o prazer e o sofrimento em um mundo que oferece abundância em quase todos os aspectos da vida. A busca pelo equilíbrio entre esses dois polos — prazer e dor —, segundo ela, é essencial para uma vida saudável. “Não seríamos humanos se não buscássemos dor e prazer. Mas devemos nos manter flexíveis o suficiente na busca pelo prazer, e até da dor, para sempre retomarmos o balanço”.
O Paradoxo da Abundância, ao abordar o impacto do excesso de opções na saúde mental e no bem-estar geral, nos convida a repensar nossa relação com o desejo e a gratificação. Em vez de perseguir incessantemente mais estímulos, a solução pode estar em cultivar uma vida mais equilibrada, onde o prazer e o sofrimento desempenhem papéis complementares, permitindo que o cérebro encontre seu estado natural de equilíbrio.