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Sul Global se vale da guerra na Ucrânia para estabelecer novos parâmetros na relação com Ocidente

Redação Culturize-se

No compasso da reunião de líderes mundiais na Assembleia Geral Anual das Nações Unidas, em Nova York, nesta semana, muitos dos temas dos discursos são tão previsíveis que podem ser entendidos como parte do que se tornou um discurso internacional ritualizado.

Há discussões sobre a necessidade de prevenir a mudança climática e o aquecimento global, incluindo apelos emocionais dos líderes de pequenos estados insulares que correm o risco de desaparecer em um futuro próximo devido ao aumento do nível do mar. Há pedidos para manter a abertura ao comércio internacional em um momento em que a globalização da geração anterior parece estar em recessão. Estados autoritários repetem seus clamores habituais de não interferência e respeito à soberania dos mais fracos pelos mais poderosos. E, é claro, há chamados sonoros para a promoção da paz, seja em regiões específicas ou em todo o mundo.

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky discursa na ONU | Foto: Reprodução/NYT

Há, porém, um elemento que altera um pouco essa dinâmica batida. A guerra na Ucrânia e a presença Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, nos EUA. A dimensão internacional do conflito é pública e notória, assim como a má vontade dos países em desenvolvimento, os BRICS, agora mais inchados, com Zelensky e a Ucrânia.

Nos últimos meses, políticos e diplomatas dos Estados Unidos e da Europa têm suplicado aos seus colegas deste grupo de países pouco coerentes que se mantenham solidários com o Ocidente ao condenar a invasão da Rússia. E, por quase o mesmo período de tempo, os representantes ocidentais têm expressado perplexidade, consternação e descontentamento diante da resposta fraca às suas súplicas.

Esta questão levanta a curiosidade de perceber por que os países pobres e de renda média do mundo são tão indiferentes a um caso flagrante de agressão por parte de uma grande potência. A sabedoria convencional sugere que os países do Sul global são relutantes em criticar a Rússia por uma estratégia antiga e lógica há muito adotada pelos fracos: se você está sendo dominado por um grupo de países, digamos o Ocidente, então, em busca de obter mais espaço para respirar, você torce pelos rivais deles.

Os países pobres vêm fazendo isso não apenas em relação à Rússia, mas também em relação à China durante sua impressionante ascensão nas últimas décadas. Se você é fraco, quer parceiros – e, de forma geral, quanto mais melhor. Se eles competem pelo seu favor e apoio, melhor ainda. Sem eles, você estaria reduzido a pedir esmolas para aqueles que dominaram o sistema internacional, ou seja, os Estados Unidos e a Europa Ocidental, por décadas.

Geopolítica criativa

Existe alguma verdade nesta explicação, mas ela não dá conta de toda a complexidade. Para chegar mais perto do cerne da questão, é necessário explorar alguma da linguagem padrão em torno das relações internacionais – termos que são usados sem muita análise ou reflexão. O Sul Global é um desses termos e não resiste a um minuto de reflexão cuidadosa. Como outros já apontaram, muitos dos países frequentemente agrupados sob esse rótulo não são particularmente do Sul.

O Ocidente, por sinal, é em si uma outra mala confusa e imprecisa que não se sustenta muito bem contra um pensamento cuidadoso. Na imprensa, é rotineiramente entendido como incluindo não apenas os Estados Unidos e uma Europa Ocidental que se expande para leste, mas também Austrália, Nova Zelândia e, com frequência, Japão, Israel, Coreia do Sul e, durante os anos do apartheid, para alguns, a África do Sul governada pelos brancos.

Existe um outro termo amplamente utilizado, no entanto, que nos aproxima da situação dos países agrupados sob esse rótulo conveniente conhecido como o Ocidente: “países em desenvolvimento”. O problema aqui é menos de imprecisão do que de eufemismo. Quando falamos de países em desenvolvimento, presumimos que eles estão de fato em desenvolvimento, quando na realidade, para muitos, esse não é realmente o caso.

O uso descuidado desta linguagem emaranha a realidade de que muitos dos países “em desenvolvimento” estão presos numa estagnação econômica, ou pior, estagnação e regressão econômica. Aqui, uma verdadeira região geográfica, ao contrário de uma coleção artificial de países, destaca-se claramente: África.

A situação relativa do continente foi documentada de forma impressionante num recente relatório da Bloomberg News, que registou muitas das formas como a África perdeu terreno ao longo da última década.

O ocidente presta atenção seletiva, mas atenuada, à África, principalmente por motivos imediatos e próprios. Os mais óbvios são desacelerar a migração em grande escala do continente de crescimento populacional mais rápido do mundo, bem como combater o extremismo islâmico. Ambas as missões estão no cerne da posição enfraquecida da França no Oeste da África, onde, até muito recentemente, ela mantinha uma influência extraordinária com suas ex-colônias na região do Sahel, apenas para ver antigas nações clientes rejeitarem com raiva as antigas formas de parceria. Basta observar como Marrocos rejeitou a ajuda da França pós-terremoto na última semana.

Foto: Divulgação/Presidência da República

Estas medidas foram, por muito tempo, fundamentadas naquilo que os franceses chamaram de “cooperação”, que na realidade se traduzia em apoio financeiro, diplomático e de segurança aos governos africanos que priorizassem o combate à emigração e aos insurgentes religiosos. No entanto, o upgrade das economias desses países, e, consequentemente, o melhoramento dos padrões de vida das suas populações extremamente pobres (segundo os padrões globais), têm sido amplamente negligenciados.

Chegou a hora de questionar se isto é colocar a carroça à frente dos bois. Não são a pobreza e o subdesenvolvimento persistentes que continuam a impulsionar a emigração, o terrorismo fundamentalista e as insurgências? Seria simplista pensar que esta é uma situação que envolve apenas a França e suas ex-colônias na África.

Em vez de enfrentar essa realidade de frente, os países europeus e os Estados Unidos (leia-se: o Ocidente) recentemente adicionaram mais uma prioridade de política externa sobre a qual desejam a simpatia e a cooperação dos pobres do mundo: a batalha da Ucrânia para recuperar o controle do território perdido para a Rússia. Agora, porém, uma encruzilhada. O Sul Global em suas articulações, ou na escassez delas, parece dizer aos países ricos que a agenda de prioridades não pode mais ser imposta. Isso quer dizer que as prioridades dos países ricos serão desimportantes para os países pobres até que as prioridades dos países pobres sejam mais importantes para os países ricos.

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