Novo longa de Christopher Nolan é um estudo intrincado sobre a capacidade humanada de destruição, aquela forjada em laboratórios, em campos de batalhas, mas também em salas de audiência fechadas
Por Reinaldo Glioche
O melhor filme de Christopher Nolan até o lançamento de “Oppenheimer” tinha o personagem Harvey Dent, interpretado por Aaron Eckhart, bradando uma frase de forte potencial filosófico: “Ou você morre herói, ou vive tempo o suficiente para se ver como vilão”. Corta para a primeira cena do longa sobre o pai da bomba atômica e um letreiro informa: “Prometeu roubou o fogo dos deuses para dar aos homens e por isso viveu acorrentado sendo torturado por toda a eternidade”.
É curiosa a interposição de ideias, para além das referências vívidas à mitologia grega, que unem dois filmes que, como tantos outros da filmografia de Nolan, promovem um estudo contido e detalhado da obsessão, mas, também, de como heróis são forjados e descartados ao gosto da necessidade.
“Oppenheimer”, embora se ocupe de dimensionar seu protagonista, é menos uma cinebiografia no escopo tradicional e mais uma análise, robusta, opulenta e ruidosa, da capacidade perdulária do homem de buscar a própria destruição. Algo palpável até mesmo no trânsito narrativo do longa, que vai do thriller conspiratório ao drama político em um batimento cardíaco. A ciência aqui, sem qualquer reducionismo inerente, é um MacGuffin (termo cunhado por Alfred Hitchcock para um elemento de deflagra a trama e motiva os personagens, mas tem pouca relevância para o filme em si).
Não se implica que a bomba atômica é desimportante no longa de Nolan, que de maneira alguma é leniente com seu protagonista e com todos aqueles que tomaram partido naquele capítulo sombrio da humanidade, mas o diretor, que adapta o livro no livro vencedor do Prêmio Pulitzer “American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer”, de Kai Bird e Martin J. Sherwin, está mais interessado nos ciclos, como salientado na interposição que abre esta resenha, do que em um fato único. Ciclos, aliás, no contexto da corrida armamentista, que o próprio Oppenheimer percebeu que com “a bomba de todas as bombas” não interromperia.
É, portanto, assombroso que o filme exista em um mundo que vê uma nova corrida com potencial disruptivo e ameaçador tomar forma, a da inteligência artificial. Tanto lá como cá, a ciência ocupa voluntariamente um papel coadjuvante em um momento transformador.
O ego, advoga Nolan com uma inusitada cena que mistura um sexo triste com sânscrito, é o catalisador dessa realidade: “Então eu me tornei a morte, o destruidor de mundo”. A frase proferida por J. Robert Oppenheimer tem origem hindu.
A Bhagavad-Gita é um texto de 700 versos, escrito em sânscrito, que se centra em um diálogo entre um grande príncipe guerreiro chamado Arjuna e seu cocheiro, o Senhor Krishna, uma encarnação de Vishnu. Enfrentando um exército adversário que contém seus amigos e parentes, Arjuna está dividido. Mas Krishna o ensina sobre uma filosofia superior que lhe permitirá cumprir suas obrigações como guerreiro, independentemente de suas preocupações pessoais. Isso é conhecido como dharma, ou dever sagrado. Esse é um dos quatro ensinamentos principais da Bhagavad-Gita: desejo ou luxúria; riqueza; o desejo pela retidão ou dharma; e o estado final de libertação total, ou moksha. Enfim, ciclos.
Ciclos de obsessão e de heróis atirados em desgraça. “Oppenheimer” é sem dúvida alguma o filme mais refinado de Nolan, no arranjo das ideias que permeiam sua filmografia, na organização de suas próprias obsessões como cineasta e, por que não, no comentário que faz tanto de seu biografado, uma figura polêmica e rica por si só, mas que que faz de nossa própria humanidade a partir dele como espelho.
Oppenheimer: antagonistas íntimos e públicos
Para além da destreza técnica, um valor comum, mas não por isso digno de menosprezo, nos filmes de Nolan, a excelência que se alcança aqui merece um capítulo à parte. A música em “Oppenheimer”, composta e conduzida com brilhantismo nuclear por Ludwig Göransson eleva sensivelmente as sinapses da audiência e combinada à montagem metonímica de Jennifer Lame, dá ao 12º longa-metragem de Christopher Nolan um viés expressionista inescapável, que viabiliza ainda mais sua condição de clássico instantâneo.
Ainda mais porque o elenco faz muito para pavimentar essa condição. Cillian Murphy, um ator a quem Nolan desde muito cedo em sua filmografia confiou com papeis na trilogia do Batman, em “A Origem” e “Dunkirk”, tem em “Oppenheimer” o grande papel de sua carreira. Toda a sua musculatura dramática é trabalhada aqui com ponderação, gana e sapiência. Mas Nolan enxerga na imensidão de seus olhos azuis um portal para a perdição de Prometeu e torna tudo ainda mais crepuscular.
Nos embates externos, recorre a Robert Downey Jr., em seu melhor momento como ator desde 2008, quando virou Tony Stark e chegou ao Oscar via “Trovão Tropical”, como um macaco velho da política que antagoniza Oppenheimer por inveja (?), ressentimento, vingança… Os ciclos de obsessão estão por toda parte movendo antagonismos íntimos e públicos nessa jornada de autodestruição que “Oppenheimer” tão bilhantemente ilumina.