Por Reinaldo Glioche
Karl Marx (1818-1883) é um pensador diferente para cada geração. Mais do que as leituras divergentes inerentes aos campos ideológicos, o rito geracional reavalia e ressignifica o filósofo alemão. Muitos movimentos populistas de esquerda que surgiram no mundo ocidental após a Grande Recessão de 2008, como o Occupy Wall Street, canalizaram sua energia intelectual para se envolver com a obra do pensador alemão do século XIX, em particular, o texto canônico de Marx, “Das Kapital” (1867), e suas explorações sobre a recorrência de recessões ao longo dos ciclos econômicos.
A escassez econômica relativa que os millenials enfrentam mais detidamente desde 2008, juntamente com as ideias proporcionadas por Marx, ajudaram a afastar a esquerda contemporânea da teoria linguística pós-modernista que havia dominado a academia dos Estados Unidos nos anos 1990. A necessidade de explicar a queda dos padrões de vida e o desemprego passou a ter prioridade sobre a análise mais complexa das teorias disponíveis. Esse materialismo pavimentou projetos de esquerda como as derrotas campanhas de Bernie Sanders à presidência dos EUA e a revitalização constitucionalista no Chile.
Para muitos analistas, o populismo de esquerda dos millennials foi incapaz de compreender a crescente atomização social impulsionada pela tecnologia, conceitualizar plenamente a mudança em direção a um novo eixo multipolar centrado nas relações entre Estados Unidos e China, ou falar convincentemente sobre ameaças provenientes da automação robótica e do colapso ecológico.
Passa por aí, mas também pela objetividade com que a direita trata muitos desses temas, uma proposta oportuna de ‘mudança de rota’ para a geração Z. O ensaísta britânico David Harvey, um professor de 87 anos e fala mansa, sugere o negligenciado “Grundrisse” como alternativa ao “Das Kapital”.
Assim como “Das Kapital” forneceu orientação durante a Grande Recessão, o “Grundrisse” – e a interpretação de Harvey sobre ele – pode ser um guia indispensável para navegar em nossa situação política atual, especialmente quando se trata da questão de como lidar com uma inteligência artificial em rápida evolução.
O “Grundrisse” é uma coleção de cadernos inéditos de Marx que abrangem toda a sua crítica da economia política clássica. Ele é mais solto e caótico em sua forma do que “Das Kapital” e abrange uma gama maior de temas, incluindo arte, história antiga, geografia e tecnologia, além dos temas econômicos esperados, como as relações entre produção, distribuição, troca e consumo no capitalismo industrial do século XIX. Harvey apresenta o “Grundrisse” como a exposição de uma vasta gama de sistemas mecânicos sobrepostos e em constante evolução, que explicam uma variedade enciclopédica de fenômenos modernos, incluindo dinheiro, formas capitalistas de escravidão, a transformação de ferramentas em máquinas e o surgimento do ator econômico racional nas teorias de economistas políticos como David Ricardo, Adam Smith e Thomas Malthus.
Marx e o ChatGPT
A exposição mais profética de Marx no “Grundrisse” é frequentemente chamada de “Fragmento sobre as Máquinas”. Esta seção, no meio do texto, descreve como o investimento capitalista em maquinário produtivo complexo irá mudar radicalmente a subjetividade humana – resumidamente, transformando a relação das pessoas com suas ferramentas de domínio para subordinação e alienação.
Marx compartilha um otimismo com o Vale do Silício sobre o potencial de mudanças tecnológicas rápidas, mas também é muito mais cético em relação aos efeitos não controlados a curto prazo que as máquinas terão sobre os seres humanos.
Nesse inesperado alinhamento ao Vale do Silício, Marx acreditava que a automação poderia libertar a humanidade do “trabalho necessário” de reproduzir a sociedade. No entanto, no “Grundrisse”, ele nega que máquinas de propriedade privada em busca de lucro possam libertar os seres humanos do trabalho. Em vez disso, as máquinas reduzirão os salários e criarão uma vasta reserva de trabalhadores desempregados. Um dos dogmas do filósofo, convém lembrar, é que as máquinas precisavam ser ferramentas controladas de forma criativa pelos seres humanos, em vez de sistemas projetados para fazer o contrário.
É aí que entra o dilema proposto pelo ChatGPT. Como aproveitar uma tecnologia que dobrará a produção sem garantir qualquer aumento nos salários, no tempo de lazer ou em novas oportunidades de trabalho? Harvey discute a inteligência artificial de grandes modelos de linguagem, com ceticismo de que a tecnologia seja adotada de forma positiva por empresas que também podem ser prejudicadas. “Devemos ter claro que os capitalistas não recorrem à IA porque a desejam (de fato, muitos claramente a temem)”, mas porque a competição os coage a usá-la, quer desejem ou não”.
A despeito do manancial filosófico de seu guru, a esquerda em um contexto global ainda é trôpega na abordagem da tecnologia. Os primeiros sinais de uma postura pró-tecnologia emanam dos EUA nas figuras de Sanders, que percebeu que tecnologia e meio ambiente são pontos centrais do debate político, e Alexandria Ocasio-Cortez, autora de um projeto para lá de interessante, o Green New Deal.
No Brasil, o paraíso da retórica, ainda estamos debatendo regulação de mídia – algo superado em países do 1º mundo há pelo menos 20 anos. Mas refletir sobre os rumos de nossa humanidade – e o próprio fluxo das relações sociais no iminente futuro – é muito necessário e recorrer a Karl Marx talvez seja um bom ponto de partida.