Em entrevista ao Culturize-se, Iberê Carvalho fala das motivações para a narrativa do longa e Paulo Miklos admite familiaridade com “marés” de hate na internet
Por Reinaldo Glioche
“É duro lançar um filme depois de quatro anos porque você muda enquanto realizador e o filme não”, observa com certa comiseração em entrevista ao Culturize-se Iberê Carvalho, a principal mente criativa por trás de “O Homem Cordial”, já em cartaz nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Maceió, Manaus, Natal, Niterói, Palmas, Poços de Caldas, Porto Alegre, Recife e Salvador.
A razão para essa aparente insegurança, totalmente infundada no juízo de seus dois protagonistas, Paulo Miklos e Thaíde, está nas críticas ao fato do longa abraçar muitos temas importantes. Mas quantos temas um filme deve ter? E quantos deles podem ser importantes? Essa verve imobilizante é típica da era das redes sociais, um dos (muitos) temas do longa.
“O Homem Cordial”, talvez, não dê conta de todos os seus temas, mas fornece subsídios suficientes para um, dois, muitos debates. “Ele (o filme) ganhou mais força. Está mais contundente”, observa Thaíde, desautorizando a hesitação de seu diretor. “O filme retrata muito bem a intolerância, a desinformação”. “O Iberê é um diretor que ouve dos atores e trabalha muito no diálogo”, continua Paulo Miklos. “O personagem tem que ter sua própria verdade. Por que que ele age como age? O roteiro precisa ter sentido, mas precisa ter o sentido de cada personagem”
Para Paulo, essa garantia de autenticidade afere dinamismo à obra, um thriller. Iberê conta que a “sementinha nasceu de uma sensação de impotência e perplexidade com o que está acontecendo no Brasil. Pra onde a gente tá indo com essa intolerância toda e essa polarização exacerbada”?
O Homem Cordial, ao contrário do que muitos pensam, não se refere a uma característica amável e gentil de nós brasileiros. Sérgio Buarque se referia à Cordial (palavra que vem de Cordis, que em latim significa coração) como um sujeito passional, que age pelo afeto, e esses afetos acabam mascarando as relações de conflito e de extrema violência de nossa sociedade. O título é uma provocação crítica e um convite para uma reflexão sobre nossa identidade.
No filme, Miklos vive Aurélio, líder de uma banda de rock que aborda questões sociais que está voltando à ativa. Na noite de retorno de sua banda aos palcos, viraliza na internet um vídeo que o envolve na morte de um policial militar. Ninguém sabe o que de fato aconteceu, mas o astro passa a ser alvo de grupos radicais. Aurélio, então, se vê inserido em uma tensa e violenta jornada pelas ruas de São Paulo. Durante uma única noite, encontrará figuras importantes de sua carreira e Helena, uma jovem jornalista determinada a descobrir o que realmente aconteceu.
Iberê escreveu o roteiro junto com o uruguaio Pablo Stoll, mas apesar de ter muito claro sobre o que queria abordar em seu filme e o gênero, o thriller, a história teimava em escapar-lhe. “Certo dia saiu a matéria no jornal que o Chico Buarque estava saindo de um restaurante no Leblon e foi atacado por umas três, quatro pessoas. Mandei pro Pablo e ele falou ‘é isso!'”, recorda-se o cineasta. Hoje eu percebo que fazer d protagonista o artista foi um acerto porque durante quatro anos, os artistas foram os vilões para uma camada da população, como se fosse aproveitadores do Estado”.
O cineasta diz que não está apontando o dedo para ninguém com seu filme, “que é uma autocrítica”. Isso porque “não dá para falar de injustiça no Brasil sem olhar para a questão racial”. Para ele, Paulo, que se envolvido em uma teia de ódio, percebe que o buraco é mais embaixo para outros personagens à medida que adentra a periferia paulistana.
“Eu conheço essas marés”, do hate, confessa Miklos. Ele reconhece que seu personagem não é ativista, embora seja tomado como tal, e aponta sua falha em reconhecer o poder que a internet tem atualmente como o detonador de seu conflito. A despeito das marés, Iberê atribui a escolha de Paulo como protagonista de seu filme à “esquisitice” reconhecível que o ator traz para o longa. “O personagem precisava de certa dubiedade que o Paulo trabalha muito bem. Tem carisma, mas não deixa de ser misterioso”.
Voltando à multiplicidade de temas, o cineasta comenta que nos primeiros tratamentos do roteiro de “O Homem Cordial”, havia ainda mais temas no filme e que muita coisa saiu também no processo de edição. Mas aponta suas prioridades narrativas: “A questão do linchamento, na forma e no conteúdo, e a questão racial, que acho que está muito forte e latente no filme”.