A discussão para regulamentar e taxar vídeos sob demanda (VoD), ou seja, canais de streaming, como a Netflix, não é exatamente nova e gera um longo debate que divide opiniões
Por Mariana Soek
Os streamings caíram no gosto popular, especialmente durante a pandemia, quando as pessoas precisaram ficar mais tempo em casa. Portanto, encontraram nos filmes e séries um consolo e descanso. É uma missão quase impossível encontrar alguém que não tenha uma assinatura ativa de alguma plataforma entre as muitas disponíveis.
É o que mostra uma pesquisa encomendada pela Roku, plataforma que agrega mais de 5.000 canais de streaming; 75% dos brasileiros usam plataformas como a Netflix, HBO MAX, Amazon Prime Video, Disney+, entre outras, todos os dias. Além disso, 88% dos entrevistados já viraram a noite maratonando uma série.
Mas e se os canais de streaming que são tão queridos e explorados pelos brasileiros não fossem mais tão acessíveis? Essa realidade pode acontecer, especialmente se os vídeos sob demanda sofressem uma tributação.
Isso era o que dizia o projeto de lei (PLS 57/2018), da autoria de Humberto Costa (PT-SE), que pretendia gerar uma Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) sobre a comunicação audiovisual sob demanda e a distribuição de vídeo doméstico, abrangendo as plataformas de compartilhamento.
No projeto de lei, a Condecine receberia até 4% do faturamento de empresas, com desconto de até 30% do valor devido caso fosse destinado à aquisição de direitos ou projetos brasileiros nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Além disso, o projeto de lei colocava como obrigação das empresas investir parte de seu faturamento em produções nacionais.
Algo bem semelhante aconteceu com a TV por assinatura em 2011. Na Lei do SeAC, que obriga as emissoras a repassarem uma taxa para a Condecine – essa porcentagem retorna aos canais através de programas de incentivo- e a lançarem conteúdos nacionais e regionais.
Na visão de Marcelo Godke, especialista em Direito Empresarial, Governança e Integridade Corporativa, esse nível de conteúdo nacional obrigatório para as plataformas é um desvio natural do curso econômico do mercado de televisão e de produção cinematográfica. Ou seja, às vezes, o conteúdo nacional demandado é feito na forma de programas que tem um caráter bastante duvidoso, isso porque tem a obrigação de se criar aquilo. “Então, no lugar de suprir a que o mercado efetivamente demanda, cria-se um desvio natural. Então, eu vejo que qualquer movimento no sentido de criar uma contribuição pros canais de streaming é indevida, bastante ruim e só vai encarecer o produto”, expõe afirma ao Culturize-se.
O que é a taxação e por que tributar?
Bom, em suma, a taxa, como mencionado anteriormente, é o repasse de uma porcentagem do que os canais ganham para a Condecine, que está atrelada aos fundos nacionais. Parte desse recurso retorna, de alguma maneira, para os canais. E esses incentivos podem ajudar o crescimento do setor no país.
Em contrapartida, como observado por Marcelo Godke, o estado também pode tributar por dois grandes motivos: o primeiro é pagar suas contas: pagar pensão, salário, sistema de saúde e, portanto, precisa arrecadar dinheiro.
O segundo para fiscalidade, quando ele procura criar um desincentivo para determinadas coisas feitas pela população. Por exemplo, se eu entendo que o consumo de cigarro ou álcool seja ruim pra população, eu vou e tributo de maneira excessiva, e isso encarece o preço, levando ao desinteresse dos consumidores.
E há um terceiro motivo bastante interessante. “O que também pode acontecer é (o governo) fazer um caça às bruxas e então tributar de forma exorbitante para reduzir a liberdade de expressão. Por isso, existe uma proibição na Constituição Federal de se tributar compra e venda de livros para não se barrar a liberdade de expressão”, explica Marcelo.
Essa proibição citada por Marcelo é uma imunidade constitucional dada a compra e venda de livros, aprovada em 1988 e tem o objetivo de não onerar os livros, jornais, periódicos e o papel destinado à impressão destes bens com impostos. Essa imunidade também se estendeu para os livros eletrônicos, os suportes exclusivos para leitura e armazenamento, além de componentes eletrônicos que acompanham material didático.
Sendo assim, levantamos um novo ponto de interrogação. Em 1988, a tecnologia de streaming ainda não existia. Então, em tese, podemos ter a interpretação que essa imunidade se estenderia para esse modelo de negócio, especialmente aquelas relacionadas a parte educacional e a liberdade de expressão?
O streaming vai de vento em popa
Os vídeos sob demanda, canais de streamings e as plataformas de conteúdo crescem exponencialmente. Esse crescimento vem desde 2017, com um boom de 119,2%, como mostra um panorama da Ancine.
Aliados a super velocidade da Internet e na tentativa de atrair um público ainda maior, esses canais passaram de exibidores para produtores. O caminho mais lógico aconteceu: com tanta produção também teve muita publicidade. Então, esses streamings estão bombardeados com conteúdos e publicidades.
O cineasta e produtor executivo de cinema, Tico Barreto, explica as consequências desse movimento que fez com que a TV e o cinema deixassem de ser os únicos exibidores. “Essa demanda começou a crescer sem regulamentação. É lógico que a Internet não quer taxar porque eles querem continuar ganhando muito em cima da produção, porém legislar e taxar os canais de streaming colabora com o crescimento do setor (de audiovisual)”.
“Como são empresas que faturam milhões, até mais que a televisão, elas precisam ser sujeitas as mesmas leis para que tudo fique em um conforme”, complementa Tico.
Em contrapartida, Marcelo lembra dos consumidores e cita o estudo da elasticidade presente na economia, relacionado ao aumento do preço. Ainda que esse crescimento seja muito pequeno, ele pode levar a uma queda gigantesca do consumo, ou seja, o preço não tem muita elasticidade.
“Particularmente, eu não sei dizer aqui se haveria muita ou pouca elasticidade (neste caso dos canais de streaming), mas há um risco bem grande da gente tributar e aumentar em 2, 3, 4 ou 5% por cento por conta da imposição do imposto sobre o serviço, isso pode representar uma queda substancial da utilização do serviço ou até, a gente sabe que como plataforma de streaming as pessoas compartilham senha, pode aumentar a utilização indevida do serviço”, pondera o advogado.
“O resultado é que então a gente tenha uma queda da utilização do serviço pela população em geral, o que não é bom. Ou uma queda de receita para as empresas, o que também não é bom, porque se houver queda da receita por aumento da tributação a gente vai ter um desincentivo a investimento nessa área. Sendo assim, empregos serão destruídos, a qualidade do conteúdo vai cair e principalmente, na parte da educação, documentário e etc a gente vai ver uma piora considerável”, completou.
Em 2019, a Abranet se posicionou sobre regular a atividade em modelo similar ao utilizado para TV por assinatura e, conforme publicado em seu site ‘definir uma nova tributação sobre esse segmento parte de uma premissa equivocada: o vídeo sob demanda não é um novo elemento no contexto do audiovisual, mas, sim, o mesmo mercado de ‘locação de vídeos’ ou de ‘vídeo doméstico’ que já existia. O que mudou foi a plataforma tecnológica. Não há necessidade de regulação ou de nova tributação”. O posicionamento da Associação permanece o mesmo.
Na mesma nota, a Abranet fala que o VoD permite ao cidadão criar seu próprio catálogo do que consumir e que interferir nesse poder é um desrespeito à Constituição.
Por outro lado, Tico Barreto defende que é necessário regular e taxar para não virar terra de ninguém. “Isso não tem a ver com liberdade de expressão, pois ela tem um limite, ninguém pode ficar sujeito que no pensamento de liberdade de expressão as pessoas criam mentiras e movimentam massas e setores. Essa é outra parte triste da internet livre, então é importante sim ela estar regulamentada e ter taxas, pois fica mais fácil de perceber todas essas coisas”.
“Pensando como produtor que tenho meu TikTok e Instagram, produzo conteúdo – não tão vertiginosamente, como a ideia de auto sustento, mas produzo algo – acho interessante a taxação. Não taxar o produtor, mas o Youtube, porque quantos milhões ele ganha em cima de um monte de gente e não tem recolhimento. Atua de certa forma, muitas vezes, prejudicial ao sistema porque dá abertura à fake news, por não ter regulamentação, alienando pessoas”, completa Tico.
Cenas dos próximos capítulos
O projeto de lei de 2018 foi arquivado ao final da legislatura em 2022, o que poderia pôr fim às discussões. No entanto, o atual Presidente Lula já se mostrou favorável à discussão e taxação dos VoD. Apesar dessa manifestação, procurado pelo Culturize-se, o Ministério da Cultura silenciou. A reportagem também procurou diferentes plataformas de streaming que prefiram não se posicionar.
Além disso, no dia 9 de março de 2023, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, recebeu a visita de representantes do audiovisual do país. Eles entregaram o documento “Carta de Tiradentes”, com solicitações e sugestões para o setor. Nesta carta, uma das pautas é a regulamentação dos vídeos sob demanda, como a Netflix. A produtora cultural Raquel Hallak disse que é necessário e urgente que o Brasil regulamente os chamados serviços de streaming.