Jonathan Pereira
“Senhora do Destino” está de volta na íntegra a partir desta semana no Canal Viva. Os fãs da novela – dona da maior audiência entre as produções de teledramaturgia no século 21, atingindo 50,31 pontos de média geral em 2004 – vão poder matar a saudade todos os dias de personagens icônicas, como a vilã Nazaré Tedesco (Renata Sorrah), Maria do Carmo (Susana Vieira) e Giovanni Improtta (José Wilker). Mas o que fez a história alcançar esse sucesso?
Depois de “Suave Veneno” (1999) ter ficado aquém das expectativas, Aguinaldo Silva estava determinado a mostrar que sabia fazer também tramas urbanas. Para isso, inspirou-se no noticiário, mais especificamente no caso Pedrinho – recém-nascido roubado na maternidade em 1986 e criado pela sequestradora, sendo encontrado só 16 anos depois.
“Queria escrever uma história sobre os acontecimentos do dia a dia, uma novela na qual os pobres seriam os protagonistas, não os ricos. Isso era o mais revolucionário: o núcleo principal de ‘Senhora do Destino’ era o do subúrbio, exatamente o contrário das outras novelas, em que os ricos tinham problemas metafísicos e os suburbanos eram engraçados. Virei o jogo, ou seja, fiz os suburbanos com problemas metafísicos e os ricos, engraçados”, explicou Aguinaldo no livro “Autores, Histórias da Teledramaturgia”, do Projeto Memória Globo.
Novelas que se baseiam no que está em evidência na vida real têm grandes chances de êxito – vide “O Clone” em 2001 que, além da clonagem, abordava também o islamismo, cuja curiosidade do público estava em alta por conta dos atentados de 11 de setembro. Ou seja, um bom ponto de partida.
Algumas características de “Suave Veneno” foram aproveitadas, mas trocando o sexo das personagens – o protagonista da trama anterior era um empresário nordestino dono de marmoraria que tinha de lidar com três filhas, enquanto Do Carmo era uma nordestina proprietária de uma loja de materiais de construção com quatro filhos (fora Lindalva, desaparecida). Dessa vez deu certo.
O elenco também teve grande responsabilidade. Renata Sorrah, que já tinha a marcante Heleninha Roitman de “Vale Tudo” (1988) no currículo, conseguiu imortalizar-se na galeria de grandes vilãs da teledramaturgia com sua Nazaré, que roubou o bebê de Maria do Carmo. A atriz soube aproveitar as nuances do texto e construir uma personagem má mas engraçada, com tiradas que ainda hoje, quase 20 anos depois, seguem vivas em memes.
Susana Vieira agarrou com unhas e dentes sua Maria do Carmo, mulher guerreira que teve a filha roubada e sonha em reencontrá-la. Com papéis repetitivos na TV, José Wilker (que nos deixou em 2014) voltou a chamar a atenção com Giovanni Improtta, e seu bordão “Felomenal” caiu nas graças do público.
A primeira fase é curta e se passa durante a ditadura militar, mas não espere nada aprofundado sobre a época: é tudo bem superficial, com a confusão nas ruas durante o AI-5 servindo como pano de fundo para que Nazaré roube Lindalva (Carolina Dieckmann), batizada e criada a partir daí como Isabel.
O telespectador logo deixou de lado as falhas cronológicas – pela idade, as personagens deveriam estar na década de 1990, mas a tecnologia atual da época aparecia livremente, como na reconstituição do rosto da sequestradora – e comprou a saga.
Nos núcleos paralelos, temas como violência contra a mulher – com Rita (Adriana Lessa) levando surras do marido violento Cigano (Roney Marruda) -, corrupção (destaque para Eduardo Moscovis e Letícia Spiller na pele de Reginaldo e Viviane) e lesbianismo, com o casal Eleonora (Mylla Christie) e Jenifer (Bárbara Borges), foram abordados.
Como duas mulheres em um relacionamento era algo relativamente novo nas novelas – na anterior, “Mulheres Apaixonadas”, duas jovens também se gostavam, mas foi preciso um verdadeiro malabarismo no último capítulo para que seus lábios se tocassem – Aguinaldo desenvolveu Eleonora como uma profissional dedicadíssima ao trabalho no hospital, talvez para induzir a mentalidade do público da época a chegar a um raciocínio como “ela gosta de mulher, mas é uma boa pessoa, olha”. Tenha sido ou não a intenção, mais um avanço: as duas apareceram acordando na mesma cama.
Apesar de longa (221 capítulos), “Senhora do Destino” não cansa e também foi sucesso em suas duas reprises no “Vale a Pena Ver de Novo”, elevando a média do horário: 21 pontos em 2009 e 18 pontos em 2017 – quando foi exibida quase na íntegra, com 195 capítulos, tornando-se a mais longa da sessão.
Os capítulos no Viva vão ao ar de segunda a sábado às 23h, com reprise às 13h30. Quem não tiver paciência de assistir diariamente, pode conferir no Globoplay – onde está disponível desde setembro de 2022.