Na semana em que se celebrou o Dia Nacional da Visibilidade Trans, convidamos o leitor do Culturize-se para conhecer a obra da autora trans Camila Sosa Villada
Aline Viana
O escritor chileno Roberto Bolaño escreveu, certa feita, que “da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina na década de cinqüenta, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende”. Combine-se essa verdadeira maldição com a clássica orientação de que os escritores devem partir do que conhecem e têm-se “Sou uma tola por te querer” (Editora Tusquets, 2022), da argentina Camila Sosa Villada.
Camila Sosa Villada é uma travesti, formada em Comunicação Social e Teatro pela Universidade Nacional de Córdoba, e nessa obra traz contos narrados por mulheres trans. E a violência física e verbal está tão presente nos textos como nas ruas.
Apenas no Brasil, segundo as estatísticas mais recentes, uma pessoa trans foi morta a cada três dias em 2022. E mesmo diante de uma provável subnotificação dos casos, o nosso país desponta há 14 anos como o líder de violência contra pessoas trans.
A maioria dos contos traz mulheres trans vítimas de violência sexual desde a mais tenra idade e que se veem coagidas a buscar na prostituição acolhimento e o ganha-pão.
“Aprendera a se desligar deste mundo e a se proteger dentro de si como se estivesse em um palácio.”
Como qualquer um que já se deparou com uma travesti pelas esquinas dos centros urbanos, elas podem ser alvos, mas não são frágeis.
As mulheres que Villada nos apresenta evocam justamente esse arquétipo da guerreira, semelhante à postura que mulheres negras exerceram ao longo dos séculos na nossa América Latina. Elas estão sempre em estado de alerta, em meio a conflitos e em luta contra os próprios sentimentos (de amar quem as rejeita ou agride, de desejar o simples que se transmuta em impossível pelo preconceito do outro, de almejar ser de fato quem elas já são).
Por estarem imersas nessa lógica, as personagens travestis de Villada não têm tempo para o descanso, para viver a própria delicadeza, para serem amadas. Elas não descansam, não se entregam.
Parte da estratégia de sobrevivência no mundo apresentado pela escritora argentina é abraçar-se ao fantástico, o que faz com que muitos relacionem sua obra com o realismo mágico de Gabriel Garcia Marquez, referência assumida de Villada.
Há personagem que se transforma, que fala, se enamora e até que gera animais ao se relacionar com um homem decapitado. Mas, também há bolero e drones que ajudam a perseguir pessoas trans e quem com elas se relacionava.
“Por último, passamos a escutar o esvoaçar dos drones que gritavam com voz robótica:
TODO TRAVESTI DEVE MORRER E, COM ELE, TODOS OS QUE OS TOCARAM TRÊS VEZES. COLABOREM COM O MUNDO, MATEM UM POUCO!”
Em entrevista recente ao canal “Litera Tamy”, no Youtube, a autora contou que parte desse interesse na magia da natureza viria dos contos de folclore argentino que conheceu ainda na adolescência.
E há milagres e melancolia e mulheres mexicanas trans e cabeleireiras do Harlem que se tornaram amicíssimas da cantora Billie Holiday, na Nova York da década de 1940. E humor, sim, há espaço tanto para o riso debochado quanto para o triste.
Em uma época que se fala tanto em “lugar de fala” e em representatividade, ler os escritos de Camila Sosa Villada são uma janela para um mundo de homens e mulheres que deveríamos nos permitir conhecer melhor – vale começar essa jornada pela boa literatura.
Ficha técnica:
“Sou uma tola por te querer”
Camila Sosa Villada
Editora Tusquets
200 páginas
R$ 56,90 (edição física) e R$ 31,34 (e-book)