Por Laisa Lima.
Em grego, dêmokratía. Dêmo (povo) + kratía (força, poder). Democracia: “governo em que o povo exerce a soberania”. A teoria desta palavra está na boca de todos. É democrático para lá, anti-democrático para cá; as ações individuais e coletivas sempre resvalam no conceito, para o bem ou para o mal. A verdade nua e crua é que cada um tem a sua versão, indo desde a ditadura dos comportamentos de “1984” até a polarização consciente observada em “Democracia em Vertigem” (2019), documentário indicado ao Oscar realizado pela brasileira Petra Costa.
Entretanto, a libertinagem disfarçada de liberdade que persegue nações ao redor do mundo, não está dentro nem dos padrões menos arcaicos de “democracia”. É o caso do que mostra o filme documental “O Ataque ao Capitólio” (2023), de Jules Naudet e Gédéon Naudet, agora disponível na plataforma HBO Max.
Em 2020, houve uma derrota nos Estados Unidos que beira o insuportável para alguns: Donald Trump não superou os 270 delegados do Colégio Eleitoral norte-americano que gostariam de ver Joe Biden na presidência. Apesar do reconhecimento legal da votação, Trump desconsiderou a vitória legítima de Biden, incentivando eleitores à baderna que, mais tarde, entenderam suas palavras como uma diretriz e estariam em Washington, D.C., em frente à Casa Branca, clamando por uma justiça sem o mínimo de fundamento. Em 6 de janeiro de 2021, então, o pano de fundo de “O Ataque ao Capitólio” saiu da inexistência. Manifestantes pró-Trump decidiram mancomunar a invasão das duas casas legislativas onde o resultado da eleição seria promulgado.
O longa-metragem revela detalhes da invasão de dentro e de fora do local, ressaltando a agonia vivida pelos parlamentares na Câmara, a momentânea desesperança dos policiais e o ensandecimento dos invasores.
A aura messiânica de Donald Trump, aqui, não é contestada. Os acontecimentos daquele 6 de janeiro falam por si só, sem a necessidade de uma intermediação narrativa ou indução enfática. Pelo contrário, o intuito da produção não é ser escancaradamente partidária; o que se vê leva de forma automática à reflexão, dado que o documentário funciona na posição de dispositivo informativo.
A munição humana, aliás, é usufruída mais como fonte de enriquecimento dos dados do que pontos de conexão. Os relatos de quem vivenciou os tenebrosos momentos, ainda que sejam fortes a ponto da curiosidade transformar-se em empatia e solidariedade, agregam valor estatístico para a base do que é testemunhado. Logo, o maior intuito é detalhar o terrorismo diante de suas múltiplas facetas. É a partir daí que concepções sobre o livre-arbítrio e a forma de condução de um país, são questionadas.
O posicionamento de um líder é tal qual o de um guru: indivíduos que piamente creem em suas intenções são influenciados por ele de maneira visceral. E, quando juntos, estes cidadãos fazem o pior lado da expressão “a união faz a força” valer na realidade. E por que a violência como vingança? Por que a destruição do patrimônio como nota de repúdio? Por que atacar para agradar suas próprias concordâncias? O discurso de ódio, famoso nas redes sociais, explica um pouco do que é se fazer ser ouvido por intermédio da agressão. Contudo, a obra desfoca dos arredores da data, omitindo um compilado de ofensas, crimes e deslegitimações ao longo do mandato de Trump, acarretando a ele o papel de culpado em uma maneira subjetiva. Para Jules e Gédéon, é pouco interessante perder tempo contextualizando o entorno; a depredação material e principalmente democrática presenciada no Capitólio é um exame de consciência no sentido da simbologia de autonomia individual.
Todavia, o filme não é totalmente isento de opinião direta. “O Ataque ao Capitólio” coroa os policiais; sempre na linha de frente, os profissionais enfrentaram um povo enlouquecido, raivoso e pouco consciente de seus deveres. Nos depoimentos – que excluem a presença dos vândalos -, os homens que participaram da contenção exercem o direito da fala livre, inclusive mencionando passagens racistas sofridas pelos policiais negros. É brevemente citado também o movimento “Vidas Negras Importam”, cuja operação de afastamento dos manifestantes se deu de forma bem mais agressiva. E, nas oportunidades que obtém de se aprofundar em um tópico polêmico, o documentário recusa a oferta e retorna para a zona de guerra em Washington. Parlamentares e funcionários das casas se atém à denúncia de seus sentimentos internos na hora da invasão, deixando escapulir uma ou outra crítica ao governo de Trump, sem muita sequência.
Seria irresponsável a obra não tratar de um jeito efetivo pautas tão relevantes? É um equívoco se desvencilhar para manter o caráter detalhista do ato criminoso? Depende do ponto de vista. Caso o interesse primordial esteja em viver na pele as horas de terror no interior e exterior do palácio, “O Ataque ao Capitólio” te tornará um observador passivo. Porém, se o julgamento incisivo perante as ações dos eleitores de Trump e perante igualmente as razões pelas quais o descumprimento da lei cometido no dia é assim considerado, esta militância não é uma das características no filme. Visto isso, seu funcionamento é desvirtuado de uma queixa mais ácida (mas que seria pertinente) em despeito a regulação errônea da sociedade atual, que, além de informação, necessita de representatividade.
Para os brasileiros, o documentário relembra os vidros estirados do Palácio do Planalto, em Brasília, e o insulto à democracia que o país precisou experienciar em um triste domingo do dia 8 de janeiro de 2023. Em épocas de fake news, corrupções omissas, preconceitos velados e egocentrismo político, a nação tupiniquim, calejada das falsas liberdades de expressão, pôde enxergar o ataque ao Capitólio, antes longínquo, por uma perspectiva que relativiza o poder de escolha universal. Ou seja, o mundo não está livre da falta de democracia. O diferente, o anormal e o não convencional estimam o modo em que a(s) pessoa(s) serão tratadas diante da legislação, do mandatário e do resto da sociedade em uma infeliz hipocrisia sem fim.
“O Ataque ao Capitólio” se enquadra no reverbério de uma população intolerante, entreposta no – resguardada as devidas proporções – Brasil de Bolsonaro, nos Estados Unidos de Trump, no Afeganistão do Talibã, e em tantos outros espaços que incitam o ódio. Sim, a produção teria cacife para ser mais corajosa do que foi. Porém, fazer pensar é raro hoje em dia. Se indagar acerca do abuso oculto nas profundezas da democracia, também.