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A delícia e os horrores da arte ruim

Por Virson Gonçalves

A arte ruim é mesmo algo fascinante. Há um forte magnetismo na cena mal encenada, na música mal tocada, na pintura que tenta representar um rosto de maneira realista e dramática e produz uma batata retorcida com traços faciais. Centenas de pessoas se reúnem em fóruns na internet para demonstrar seu amor por filmes arruinados por orçamentos muito limitados, diretores ambiciosos demais, atores sem noção, conflitos criativos, performances desengonçadas, efeitos visuais pouco convincentes, figurinos mal-ajambrados. A arte ruim, ao que parece, é inescapável, pois a maioria das pessoas é capaz de observar uma certa beleza poética na feiura, um sucesso de segunda mão no fracasso.

Da piada de tiozão ao romance repleto de clichês, o ruim adiciona às artes um tempero único. A crítica de cinema Pauline Kael escreveu, em seu ensaio “Circles and Squares” (1963): “o odor de um gambá é mais distinto que o perfume de uma rosa; isso significa que ele é melhor?”, chamando atenção para as recorrências nas produções de certos cineastas. Eu, que concordo com a maior parte do que Kael escreveu neste ensaio, não diria que o fedor é melhor que o perfume, ao menos no sentido de ser mais agradável ou significativo, mas sinto que ele pode ser tão divertido quanto – até mais, dependendo do momento em que nos encontramos em nossas vidas.

Reprodução/Facebook

Claro, nem toda arte ruim é criada igual. Algumas obras são só mal executadas, mal embrulhadas, medíocres, não há nada de espetacular ou mesmo intrigante a respeito delas. Mas então, no polo oposto, temos o camp. Em seu lendário texto Notas sobre o camp, de 1964, a filósofa e crítica de arte Susan Sontag tentou dar forma a essa sensibilidade tão elusiva: o camp é a sensibilidade dos abajures espalhafatosos, dos jornais sensacionalistas, dos boás de plumas e dos vestidos de franjas. O debate iniciado por Sontag segue vivo nos anos recentes, mas sua definição permanece sólida: o camp é a seriedade que falhou.

Todos conhecemos arte que tentou fazer algo impressionante e não atingiu o alvo, artistas com metas grandiosas cujos resultados simplesmente não corresponderam. Aí reside o prazer do camp, na constatação de que uma obra de arte, uma tentativa de atingir metas estéticas elevadas, pode revelar, inadvertidamente, toda humanidade de seus criadores. Como não apreciar a ambição não-recompensada de Luc Besson em “Valerian e a Cidade dos Mil Planetas” (2017)? Como não sorrir diante das repetidas tentativas frustradas do departamento de dramaturgia da RecordTV de produzir novelas épicas e repletas de grandiosidade bíblica?

O camp é tão delicioso que há quem se especialize em criá-lo intencionalmente. As novelas de Carlos Lombardi e os filmes de Carla Camurati e Cacá Diegues pipocam na memória, com suas estéticas neobarrocas, tramas surreais e personagens gigantescos. Com efeito, há exemplos de camp tão bem construídos e deliberados, que é até injusto considerá-los arte ruim, embora certamente eles dialoguem de maneira franca com o mau gosto e se apropriem de suas preferências.

Mas o menu da arte ruim não se limita a mediocridades esquecíveis, fracassos espetaculares e tentativas de imitar esses fenômenos. Para mim, se existe arte verdadeiramente ruim, é aquela que vende más ideias, que naturaliza o ódio entre os públicos.

A arte de Tom Six se resume à fetichização da destruição do corpo humano. Os filmes de propaganda nazista de Leni Riefenstahl, ainda estudados em escolas de cinema como obras-primas, são, para mim, arte da pior qualidade. “O Nascimento de Uma Nação” (1915), de D.W. Griffith, reverenciado como o pai do cinema narrativo moderno, é certamente uma abominação, uma ode descarada às ideias racistas que formam o pensamento supremacista branco, que, assustadoramente, ainda é influente na política dos dias atuais.

Cena de “O Nascimento de uma Nação” | Foto: divulgação

O que pode ser pior que uma declaração aberta de ódio ao ser humano? Certamente uma maquiagem espalhafatosa não é mais ofensiva que “A Centopeia Humana” (Tom Six, 2009). Uma toalhinha de mesa com morangos mal pintados não é mais ofensiva que “Triunfo da Vontade” (Leni Riefenstahl, 1935). Entretanto, essas são opiniões minhas, e eu sei, pelas inúmeras discussões das quais já participei, que a régua do mau gosto não é a mesma para todos.

Arte ruim, como a arte de modo geral, nos conduz por uma paleta ampla de sensibilidades, desde aquilo que é genérico, indiferente, sem sal, incapaz de nos tocar, passando pelos prazeres do camp e chegando aos horrores da criatividade investida no ódio, no preconceito, na destruição. Uma obra de arte não precisa ser complexa, bem-acabada, profunda ou mesmo bem-intencionada para nos marcar, ela só precisa existir. E aí, cabe a nós, para o bem ou para mal, decidir o que fazer com os sentimentos que nos foram legados por ela.

Vilson Gonçalves, mais conhecido como Tio Virso, é doutor em Comunicação, especialista em História da Arte, professor e humorista. Você pode seguir vendo mais conteúdos desse tipo em suas redes: InstagramFacebook e canal do Youtube.

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