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A quem pertence a rua?

Fábio Montanari

Se você perguntar para algum residente de uma grande cidade no Brasil, para que serve uma rua, muito provavelmente você ouvirá, com pequenas variações, que a rua está lá para passar o automóvel. A pergunta por si só é capciosa, o certo seria perguntar para quem serve a rua, mas vamos deixar isso de lado por enquanto. O fato é que a rua existe desde que a primeira cidade surgiu, provavelmente, na Suméria há quase seis mil anos; enquanto o automóvel, esse infante urbano, mal completou um século de vida e já domina no imaginário popular o título de detentor do espaço público. Até mesmo a atinada bicicleta, vista como vilã por alguns pilotos de engarrafamentos, está nas pistas das cidades há mais tempo do que o automóvel. Então, por que a calçada e a ciclovia soam tanto como um adendo da rua, e não a rua em si?

Vista panorâmica superior da Avenida Paulista | Pixabay

Para além disso, se pensarmos em qualidade de ocupação, a situação do automóvel soa ainda mais problemática. A capital paulista tem uma média de 1,4 ocupante por carro de acordo com uma pesquisa da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Paulo) feita em 2011, ou seja, num cálculo conservador, 40 carros ocupam 680m² para apenas transportar 56 pessoas. Para efeito de comparação, esse espaço, num transporte público, poderia ser ocupado por 680 pessoas bem confortáveis ou mais de 3.000 pessoas apertadas. Quem demonstrou de forma genial isso foi a ONG Holandesa Fietsersbond (a associação holandesa de ciclistas), em 1978, de uma icônica peça publicitária (https://www.fietsersbond.nl/english-info/whose-space-is-it/) que até hoje é compartilhada e atualizada no mundo todo. Para piorar, em muitos locais é permitido estacionar o carro na rua junto à calçada, às vezes, pago num modelo de estacionamento rotativo, mas, na maioria das vezes nem isso, ou seja, mais metros quadrados para carros vazios e parados, que poderiam ser melhor utilizados.

Então, como devemos enxergar a rua? Primeiro devemos pensar que a rua não é apenas um elemento de conexão, de passagem, e sim um elemento de integração e estruturação da cidade. E se queremos uma cidade mais humana, devemos entender a rua como um ambiente também de estadia e permanência. Foi-se a época dos tecnocratas do urbanismo modernista, que enxergavam a cidade como uma máquina e suas ruas como tubulações; não somos meros fluidos que correm desgovernados sem autonomia para alimentar um motor. A cidade é um elemento orgânico e vivo e a rua deve, antes de tudo, servir às pessoas e não o oposto. É na rua que aprendemos, desde criança, a conhecer o outro, a criar laços e redes, vivenciar e construir comunidades, expressar e construir culturas; e é isso que faz uma cidade.

Em São Paulo, houve algumas tentativas, algumas bem-sucedidas, outras nem tanto, de remodelar a cidade nesse sentido. A maior de todas, foi a criação, ainda na década de 1970, dos famosos calçadões no centro, outra, bem mais recente e em escala micro foi a implantação de “parklets” ou minipraças em locais que antes eram vagas de carro. Infelizmente são soluções ainda muito pontuais e desatualizadas. Os calçadões nasceram não de uma proposta estruturante de repensar a cidade, e sim com foco exclusivo no centro em resposta a uma nova demanda criada pelo metrô, em áreas comerciais e de implantação pouco ordenada. E os parklets, foram destinados apenas a bairros nobres que pouco fazem para a cidade em si. Dentre as propostas, a que parece mais bem sucedida, foi a abertura de algumas vias para pedestre em finais de semana, como no Minhocão e na avenida Paulista.

No livro “Morte e vida das grandes cidades” (1961) a mais influente urbanista americana, Jane Jacobs (quem assistiu a série “Maravilhosa Sra. Maisel”, vai lembrar dela discursando contra a destruição de uma praça para a construção de uma autoestrada em plena Manhattan) defende que ao projetar ruas para privilegiar o carro em detrimento do pedestre, elas morrem e inicia-se o fim da cidade. Sessenta anos depois, suas ideias nunca pareceram tão jovens, cidades como Copenhague, Amsterdã, Roma, dentre outras, estão remodelando a cidade para retirar cada vez mais os carros das ruas, e devolvê-las a quem realmente deveriam ser os seus donos, os pedestres.

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