O texto simples de Ernaux é o meio ideal para destacar a hipocrisia e o preconceito com que a sociedade francesa trata aqueles que “nunca serão” aceitos
Aline Viana
Entre o público brasileiro, as narrativas mais curtas não contam com tanto prestígio quanto o romance. Uma das formas mais eficientes de desfazer esse equívoco é ler “O Lugar” , da francesa Annie Ernaux ((editora Fósforo, tradução de Marília Garcia, 72 páginas).
Os livros de Ernaux chegaram ao Brasil este ano, traduzidos por uma editora pequena, em um trabalho caprichoso e que parece transmitir muito da vocação daqueles que optam por investir no setor editorial em nosso País. Mal sabiam o que o futuro lhes aguardava.
Igualmente, bem-sucedidos foram os organizadores da Flip (Festa Literária de Paraty) que a convidaram para o evento. Digo isso porque nem estes, nem os editores brasileiros de Ernaux poderiam antever que ela seria a agraciada deste ano com o prêmio Nobel de Literatura.
Quem compareceu à Flip e a viu na Casa da Folha dividindo uma mesa com o nosso Geovani Martins – que acabou de lançar o seu “Via Ápia”, pela Companhia das Letras – se surpreendeu com uma autora econômica e arguta nas falas, mas, de uma enorme curiosidade e simpatia com o colega brasileiro.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, em 2020, Ernaux sugere que se comece a ler sua obra justamente por “O Lugar”, pois foi ali que teria definido seu estilo de escrita.
Como uma forma de acertar contas com o pai, recém-falecido, Ernaux que antes escrevera romances autobiográficos, se lança a evocar com uma linguagem simples e direta os dias que antecederam a morte dele e quem era esse pai.
“As crianças costumavam ter vermes. Para o tratamento, costuravam no lado de dentro da camisa, perto do umbigo, uma bolsinha cheia de alho. No inverno, algodão nos ouvidos. Quando leio Proust ou Mauriac, não consigo acreditar que eles se referem à mesma época em que meu pai era criança. O ambiente em que meu pai vivia era medieval”.
O leitor brasileiro médio, pequeno burguês em sua maioria, com certeza irá chocar-se com essa França onde o iluminismo não chegou às camadas mais pobres e ao interior do País. Explica um bocado também o sentimento que alimentou a volta da extrema direita hoje a tantos cargos políticos relevantes.
Segundo a autora, o conflito principal consiste no fato de o pai vir da pobreza extrema, possuir baixa escolaridade e lutar pela maior parte da vida para não cair, enquanto ela teve a oportunidade de ascender por meio dos estudos.
São pequenos detalhes, como falar palavras no dialeto rural ou a extrema deferência que tem ao receber as colegas universitárias da filha que entregam esse pai que tanto almeja deixar pra trás as chagas físicas e emocionais de ser um trabalhador rural e depois operário.
Por outro lado, ele já se distanciou demais daqueles com quem cresceu porque, ao ter um comércio e o luxo supremo de uma casa própria, passa a ser visto como rico.
Para a filha, as amigas dela, os colegas comerciantes e o futuro genro, a diferença entre ele e os burgueses é clara e intransponível.
“Passando por lá, uma professora minha disse certa vez que a casa era bonita, ‘uma verdadeira casa normanda’. Meu pai achou que ela só estava querendo ser educada. Aqueles que admiravam as nossas coisas velhas, a bomba d’água no pátio, as casas normandas com viga de madeira aparente, certamente queriam nos impedir de ter o que eles já tinham, eles que eram tão modernos, com água na torneira e uma casa branca.”
Poderíamos dizer que no Brasil essa diferenciação também se percebe entre os moradores das grandes metrópoles como Rio e São Paulo em relação à população do chamado “Brasil profundo”.
A virada de chave na literatura da francesa teria se dado quando ela entra em contato com as manifestações de maio de 1968 e a obra “Os herdeiros”, de Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron, que aborda o ensino universitário francês e a elite intelectual daquele país.
“Me submeti às vontades do mundo em que vivo, que se esforça para que todos se esqueçam das lembranças de uma vida com hábitos mais simples, como se fossem uma coisa de mau gosto.”
Ernaux conta que como escritora ela, assim como o pai, não conquistou uma cadeira entre seus pares da alta literatura francesa – sua obra foi acusada de ser “plana” por parte da elite intelectual.
Porém, ela foi amplamente reconhecida pelo público e conquistou um prêmio expressivo com essa obra que hoje chegou a 950 mil exemplares vendidos em 29 línguas, porém, seguiu carreira como professora e hoje mora em uma jovem cidade surgida nos anos 1970 entre Paris e o campo onde nasceu.
Não há nada de “plano” no texto de Ernaux, o texto despojado de artifícios literários complexos é a ferramenta certa para que ela acesse o lugar de fala daquele pai e da sua gente.
“O lugar” é leitura para ser feita em uma sentada, mas que continua a apertar o peito do leitor por dias e meses.
Ficha técnica
“O lugar“
Annie Ernaux
Editora Fósforo
72 páginas
R$ 54,90 a edição impressa e R$ 29,90 o e-book