“Coringa: Delírio a Dois” subverte expectativas com um filme esteticamente ousado e com a ambição de julgar os fãs do primeiro filme e reforçar os preceitos defendidos em “Coringa”
Por Reinaldo Glioche
A sofisticação da sequência do sucesso de público e crítica de 2019 já começa no título. Folie à Deux consiste em um transtorno mental no qual ideias delirantes são transferidas de um paciente para um ou mais indivíduos. Em “Coringa: Delírio a Dois” encontramos Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) preso no Arkham enquanto aguarda o julgamento pelos crimes cometidos no primeiro filme.
Estimulado por sua advogada, vivida por Catherine Keener, ele tenta prevalecer sobre a persona do Coringa. Mas o que essa ousada sequência questiona é se esse movimento é possível?
Em essência, “Delírio a Dois” é um julgamento do primeiro filme, de seu impacto e percepção junto ao público. Voltamos à sofisticação do título, que ganha materialização na figura da personagem de Lady Gaga. Sua Lee, uma psiquiatra que voluntariamente se interna no Arkham para poder conhecer o Coringa, é um avatar do fã do primeiro filme.
Sua adoração incontida serve como uma vacina contra a catatonia de Fleck e um estímulo à emersão de Coringa. Nessa conjuntura, justifica-se a corajosa opção por fazer deste filme um musical – sombrio como o “Sweeney Todd” de Burton – em que delírios, devaneios e angústias ganham viço na potente direção de arte. Os arrojos técnicos, da fotografia à trilha sonora, estão a serviço de um exercício estético poderoso que adorna uma premissa muito mais simples do que a do primeiro filme.
Se em “Coringa” havia um potente comentário político a nortear a dramaturgia, aqui o olhar sobre a persona fraturada de Arthur Fleck, ainda mais desnorteado após o Coringa, ganha mais propósito. A desconstrução do personagem – e do tipo de entretenimento que a audiência procura com ele – ocupa a realização.
A tragédia de Fleck se observa, ainda, pelo fato deste filme ser um filme de (des) amor. Como se estabilizar quando a quem você ama, ama o personagem que você criou? Mas Todd Philips, que novamente articula ideias com engenho e afinco, não submete apenas Fleck ao desatino, mas também aos fãs que subverteram o significado do primeiro filme – e assim voltamos mais uma vez à sofisticação do título, ideia destrinchada de música em música por uma realização, altiva, corajosa e indisposta a concessões.
“Coringa: Delírio a Dois” não é o filme que o fã queria, mas é uma reflexão profunda e desabrida sobre as digitais do personagem, do símbolo na cultura pop; o terceiro ato assume essa vocação com mais vigor e se dispõe a cassar terminantemente o status de anti-herói atribuído a Fleck. Há um punhado de cenas nessa fase do filme com esse condão, mas a cena final – brilhante – é definitiva.
Com ela, Phillips reforça a ideia que já havia aventado no apoteótico final de “Coringa” (2019), o símbolo erigido por Fleck sobreviveria a ele, pavimentaria elucubrações culturais e sociais, mas também é expressão de um mal-estar existencial que encontra eco do lado de cá da tela.