Por Reinaldo Glioche
O estado atual da política global reflete uma profunda ansiedade sobre o futuro da democracia. Em todo o mundo, os cidadãos expressam preocupações sobre a erosão das instituições democráticas, citando instabilidade política, desigualdade social e a ascensão de líderes extremistas. Eventos de grande voltagem, como a insurreição de 6 de janeiro nos Estados Unidos e a invasão de prédios governamentais no Brasil por apoiadores de Jair Bolsonaro, apenas aumentaram esses temores. Esses episódios, onde multidões furiosas tentaram reverter resultados eleitorais, servem como lembretes sombrios da fragilidade da democracia. Eles também destacam a facilidade com que demagogos podem incitar à violência e minar instituições democráticas.
A democracia, embora frequentemente considerada resiliente, é vulnerável ao que pode ser descrito como “democídio” – a destruição de sistemas democráticos de dentro, geralmente nas mãos de demagogos. Historicamente, construir uma democracia leva décadas, se não mais, mas seu desmantelamento pode acontecer rapidamente. A ascensão de demagogos, líderes que manipulam a opinião pública através do medo e mentiras, ameaça a própria fundação da governança democrática. Essas figuras frequentemente se apresentam como a personificação da “vontade do povo”, mas seu verdadeiro objetivo é consolidar o poder e desmantelar os controles e equilíbrios que salvaguardam a democracia.
Demagogos não são um fenômeno novo. Na verdade, suas táticas remontam à Grécia antiga, onde líderes manipulavam a opinião pública para ganho pessoal. Embora os antigos atenienses tenham desenvolvido mecanismos para conter a ascensão de demagogos, como o ostracismo, esses métodos não eram à prova de falhas. Ao longo da história, demagogos apareceram sempre que as instituições democráticas mostraram sinais de fraqueza, como durante períodos de desigualdade econômica ou agitação social.
Nos tempos modernos, os demagogos têm aproveitado as instituições democráticas para promover suas próprias agendas. Eles geralmente começam apelando para a insatisfação generalizada, prometendo “drenar o pântano” ou trazer mudanças radicais. Sua retórica geralmente se concentra na ideia de que somente eles representam a verdadeira vontade do povo, enquanto seus oponentes são retratados como elites corruptas. Uma vez no poder, os demagogos começam a minar as instituições democráticas, erodindo o estado de direito, atacando a mídia e politizando agências governamentais. Se pensarmos nos últimos 20 anos na política nacional, dá para preencher a cartela do bingo.
Um dos principais fatores que contribuem para a ascensão dos demagogos é o que o sociólogo alemão Max Scheler chamou de “doença autoimune” da democracia. Em essência, a democracia cria as condições para sua própria destruição ao permitir que demagogos explorem suas liberdades. Liberdade de expressão, eleições abertas e o direito de protestar são direitos democráticos fundamentais, mas também podem ser usados por aqueles que buscam destruir a democracia. Os demagogos usam essas liberdades para mobilizar o ressentimento público, muitas vezes alimentado pela desigualdade econômica, corrupção, entre outros fatores. Este ressentimento cria terreno fértil para demagogos, que prometem soluções simples para problemas complexos.
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O demagogo típico prospera na divisão e polarização. Eles exploram o descontentamento público oferecendo bodes expiatórios – sejam minorias, oponentes políticos ou imigrantes – e se posicionando como a única solução para os problemas da nação. Suas táticas incluem simplificações grosseiras, alarmismo e mentiras descaradas. Por exemplo, a retórica de Donald Trump durante sua presidência frequentemente envolvia demonizar seus oponentes políticos e a mídia, enquanto Jair Bolsonaro no Brasil espalhou teorias da conspiração e incitou rebeldia às instituições. Tais líderes não apenas prosperam na polarização – eles a promovem ativamente, pois isso fortalece seu poder.
Uma vez no poder, os demagogos tendem a agir rapidamente para consolidar sua posição. Eles usam truques políticos para suprimir a oposição, como manipular eleições, subornar funcionários ou cooptar o judiciário. O governo de Viktor Orbán na Hungria efetivamente neutralizou a mídia independente e o judiciário, transformando-os em ferramentas do partido governante. Em outros casos, os demagogos podem se alinhar com magnatas da mídia para controlar a narrativa e suprimir vozes dissidentes, como Narendra Modi fez na Índia, trabalhando em estreita colaboração com veículos de mídia favoráveis à sua administração.
A transição da democracia para a demagogia é gradual, mas inconfundível. À medida que os demagogos consolidam seu governo, as eleições se tornam menos sobre política e mais sobre reforçar seu poder. Elas se tornam uma ferramenta para legitimar o governo autoritário, em vez de um meio de responsabilizar os líderes. A retórica do “povo” é cada vez mais usada para justificar práticas antidemocráticas, como restringir a mídia, minar a independência judicial e reprimir a oposição política.
Apesar dos perigos representados pelos demagogos, eles não são invencíveis. A história mostra que os demagogos podem ser detidos através de uma combinação de dinâmicas internas do partido, oposição pública e resiliência institucional. Em alguns casos, os demagogos foram derrubados por golpes militares ou forçados a deixar o cargo por protestos em massa. Em outros casos, as instituições democráticas conseguiram conter sua influência através de reformas destinadas a aumentar a transparência, a responsabilização e a participação dos cidadãos.
Para evitar que a demagogia destrua a democracia, mecanismos robustos de proteção das instituições democráticas devem ser implementados. Isso inclui fortalecer agências de fiscalização, promover a diversidade da mídia e incentivar maior participação dos cidadãos na vida pública. A democracia deliberativa, onde os cidadãos estão ativamente envolvidos nos processos de tomada de decisão, pode ajudar a contrariar o apelo populista dos demagogos, promovendo o diálogo e o compromisso. Sem vigilância e reforma, as próprias liberdades que definem a democracia poderiam se tornar os instrumentos de sua ruína.