Novo longa do norueguês Kristoffer Borgli coloca Nicolas Cage como um pacato professor de biologia que começa a aparecer nos sonhos de pessoas do mundo inteiro e precisa lidar com as intercorrências da fama
Por Reinaldo Glioche
Grande sensação no último Festival de Toronto e adornado pelo selo de qualidade e atratividade de um filme produzido pela A24, “O Homem dos Sonhos”, primeiro longa americano do cineasta norueguês Kristoffer Borgli, é um estudo esmerado e cheio de reminiscências sobre a sociedade, suas vicissitudes e efemérides.
O longa, que valeu uma indicação ao Globo de Ouro para Nicolas Cage e estreia nos cinemas brasileiros em 28 de março, tem uma premissa intrigante. O ator dá vida a Paul Matthews, um professor de biologia pacato, um tanto apático e que de uma hora para outra começa a ganhar notoriedade por aparecer nos sonhos das pessoas. Os cientistas não conseguem explicar o fenômeno e Paul ganha aquela fama efêmera e superficial das subcelebridades. Ele se embevece com ela, embora se irrite com o fato de na maioria dos sonhos aparecer passivamente.
Vamos descobrindo aos poucos que Paul é um sujeito bastante arrogante, algo não raro em um acadêmico em parte fracassado, mas descobrimos, também, por meio de Paul, a lógica trucidante da opinião pública contemporânea. As pessoas que inexplicavelmente sonhavam com Paul subitamente começam a ter pesadelos em que ele perpetra barbaridades e o inconsciente coletivo então se vira contra ele.
Borgli, que também assina o roteiro, faz um exame bastante específico da cultura do cancelamento e de uma sociedade cujos significados e significantes estão intrinsecamente relacionados aos memes. Durante a divulgação do filme em Toronto, Cage disse que se identificou muito com Paul porque “não foi ser ator para virar um meme”.
“Eu vi este vídeo online que havia reunido todos esses momentos de desespero em filmes nos quais estou tendo um colapso, sem considerar o ato um ou ato dois, ou como o personagem chegou a esse nível de crise”, disse Cage. “E começou a se tornar viral ao redor do mundo. Esse não foi o motivo pelo qual me tornei um ator de cinema. Eu queria contar histórias. Eu queria fazer filmes. [Os memes] eram frustrantes porque eu não tinha controle sobre eles, mas eram estimulantes porque eu pensava que talvez alguém os visse e conferisse os filmes, descobrindo como o personagem chegou lá. Talvez esse seja o lado positivo.”
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“O Homem dos Sonhos” perifericamente aborda as idas e vindas da fama, principalmente sobre uma figura que não se estruturou para tanto, bem como explora as apropriações pela publicidade da possibilidade de ‘invadir’ os sonhos alheios. Soa profético em uma época de deslumbramento e apreensão com as possibilidades ensejadas pela inteligência artificial.
Mas o filme também observa as lacunas de solidão no convívio social, adultos infantilizados e uma sociedade que vê gatilhos em tudo e todos. É um filme bastante propositivo no escopo da intelectualidade, bastante existencial e que acolhe as emoções, dos personagens e da plateia, com comedimento.
“Eu vejo a ficção como um lugar para investigar aspectos sombrios ou disfuncionais da vida moderna. Há uma tendência muito humana de focar no espaço negativo tudo o que sentimos que está faltando, mesmo quando aparentemente temos tudo. Nós nos tornamos miseráveis na ausência de algum potencial inventado”, teoriza o cineasta norueguês.
Radiografia social
“O Homem dos Sonhos” pode ser considerado uma sequência não oficial de “Doente de Mim Mesma”, filme que participou da Mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes em 2022 e que está disponível na plataforma de streaming Mubi.
O segundo longa-metragem de Borgli analisa a relação tóxica do casal Signe (Kristine Kujath Thorp) e Thomas (Eirik Saether). Ele, um artista emergente na cena alternativa norueguesa, e ela, uma bartender que se enciúma com a atenção recebida pelo namorado. Um evento aleatório no estabelecimento em que trabalha coloca Signe em uma rota destrutiva.
Ela percebe o potencial de chamar a atenção pela dor e toma um remédio não legalizado que provoca reações alérgicas extremas que a desfigura e provoca outros tantos efeitos colaterais.
Borgli filma tudo com rigor, mas a abordagem perversa – e algo pervertida – suscita aquele incômodo espinhal. Da correção política à dinâmica destrutiva de uma sociedade que valoriza superficialidades e cultua personalidades vazias, o filme devassa essa espiral decadente de Signe sem se apiedar dela.
Tanto em “O Homem dos Sonhos” como em “Doente de Mim Mesma” um casal está no centro da ação e vemos o efeito da fama atuar sobre a dinâmica conjugal. Um subtexto para lá de interessante que traz ainda mais familiaridade aos longas.
São dois filmes que pensam a sociedade contemporânea sem concessões e com genuíno interesse em dimensionar fenômenos que superficialmente podem parecer avanços sociais, mas que engenham problemas estruturais ruidosos. São filmes inteligentes, altivos e que confiam na capacidade da audiência em dar continuidade às reflexões ensejadas.