A traição não é algo raro na sociedade. Mas a forma como ela é tratada, em diferentes gêneros, muda e coloca em debate moralidade, ética, construções sociais e até o romantismo
Por Mayra Couto
Quem já não desconfiou de uma traição, independente de ter acontecido de fato ou ser só imaginação e insegurança? E como você se sentiu só de pensar na possibilidade? Geralmente, uma traição está relacionada à uma ideia de desonestidade, é o que entendemos como um acordo que não foi cumprido. Mas e quando você está do lado contrário, o de quem traiu? Qual o sentimento? Quando se fala em moral e ética na traição, vários assuntos vêm à tona, como tipos de relacionamento, sociedade, machismo, patriarcado, entre outros.
“Aquilo que entendermos por traição tem a ver com um acordo que não foi cumprido. E isso não envolve só relações amorosas, envolve até amigos, família, mãe. E caracteriza aquilo que foi rompido“, explica Marina Pinheiro professora de psicologia, linguagem e psicanálise do departamento de psicologia da UFPE.
No contexto de relações amorosas, a traição, geralmente, tem relação com uma questão de expectativa rompida em relações monogâmicas. “Está relacionado a assegurar uma questão de posse, vem historicamente da esfera privada”, afirma Marina Pinheiro.
É o que também explica o filósofo, psicanalista e professor da UFPE, Érico Andrade: “Talvez possamos falar de um moralismo presente na própria construção de monogamia, como Friedrich Engels dizia que para ter uma propriedade privada era necessário ter herdeiros e herdeiras, em várias culturas é dessa maneira. Então, tem vínculo com o capitalismo e tem uma relação de propriedade sobre o corpo da outra pessoa, mesmo que consensual, onde essa outra pessoa só teria relação com você”.
Outro ponto forte nessa questão social é o romantismo. Afinal, quem não ama ver uma boa comédia romântica? Um dos gêneros que mais faturam em Hollywood, e que tem seu vínculo com o romantismo. “O romantismo ainda está muito forte. Como, por exemplo, em Romeu e Julieta de Shakespeare, onde a vida não faz sentido se não estiverem juntos, apesar de Romeu ter tido relações anteriores”.
Para um lugar mais próximo, quem nunca ouviu as expressões: “encontrar sua cara metade” ou “a metade da laranja”? “Quando uma traição ocorre é brutal, uma vez que se torna estranho a si mesmo. É uma quebra de expectativa social do romantismo, da construção social da família e até da própria monogamia. Nesse tipo de acordo, projetado há muitos anos, é algo que não vai funcionar e também tem o olhar cristão, de abdicar de coisas”, comenta Érico.
Outro ponto que está sempre ligado a traição é a questão social. “O moralismo é uma construção masculina, para que o patriarcado possa reinar. Por exemplo, quando Jesus vai acudir Maria Madalena e diz, ‘quem nunca cometeu pecado, que atire a primeira pedra’, em nenhum momento está em jogo as pessoas que usam a protituição. O que acontece com elas? Em várias culturas, a mulher é quem paga mais pela traição. Se você tem um pacto, você precisa seguir ele, é uma questão ética. Alguns pactos são formados, embora consensuais, a partir de uma adesão e de uma fantasia moralista”, comenta o filósofo.
A ética na traição
Para a filosofia, o moralismo é uma construção social vista para regulamentar o comportamento das pessoas, em função de certos valores, muitos deles embasados no patriarcado. Já a ética é um compromisso de responsabilização pela vida coletiva. Ou seja, vou me responsabilizar pelas minhas relações porque estou em uma vida coletiva.
Já para a psicanálise a traição também mexe no lugar de valor próprio: “A traição pode aparecer como movimento de ruptura ou de desonestidade. Mas o que está em jogo muitas vezes é o sentimento de não ser tão especial. As pessoas mudam ao longo do tempo, e a gente sabe que a psicanálise mostra muito que o nosso filtro está sempre ligado por uma parcialidade. Às vezes, as coisas estão funcionais, mas pode surgir uma nova demanda, e um novo desejo. Contudo, afetivamente a pessoa que é traída sente que algo falhou, se sente com seu valor inferiorizado. Por isso, a traição pode finalizar uma escalada do relacionamento e abrir os ressentimentos, ‘o outro me deve’ e fica numa busca de ódio e reparação impossível. Quando pensamos na escalada moralizante, abre o ressentimento, e o circuito de ódio se estabelece”, explica Marina
E é o que conta Lara Viana, advogada, que mesmo após voltar com o ex-namorado depois de uma traição, logo viu que a relação não voltaria mais ao que era antes. A advogada, foi surpreendida por prints enviados para ela, que mostravam mensagens do seu namorado, na época, consolando uma outra mulher e afirmando, que: ‘se ela estivesse com ele, seria diferente’. E, o melhor, é que quem enviou os prints para Lara, foi o namorado da outra mulher, cobrando, inclusive, atitudes.
“Lembrando agora, o namorado da mulher acabou me jogando uma parcela de responsabilidade na situação. Ele me mandou os prints e falou: ‘Segura teu namorado. Que ele está dando em cima de outras’. Como se eu tivesse alguma responsabilidade sobre um homem dar em cima de outra mulher comprometida. Na época, fiquei bem mal, machucada. Depois que terminei com esse namorado, no dia seguinte, ele fez todo um drama, se acabou de chorar, me colocou para falar com a mulher. Para ela dizer que não era isso, que aquela mensagem estava fora de contexto. Eu fiquei constrangida e para eu não ceder, na época, lembro que coloquei o print como descanso de tela do celular para eu não voltar mais”.
Contudo, socialmente o peso da traição para homens e mulheres não é o mesmo. Em algumas culturas, elas já sofreram chibatadas ou humilhações públicas. Parece distante, mas fazendo uma analogia, no Brasil, a cantora Luisa Sonsa foi vítima de ameaças e linchamento online por anos, por causa de uma suposição de traição, que inclusive foi desmentida posteriormente. Enquanto isso, outros homens com fama, assumiram publicamente que traíram e são sempre abraçados, como se tivessem cometido um simples erro. Isso só reforça uma ideia social, onde a traição quando feita por um homem é aceitável.
E foi o que Lara escutou na época: “Socialmente falando, na minha família mesmo, muitas mulheres, já passaram pano para homem traidor. ‘Ah não, ele te ama. Apenas cometeu um erro e continua sendo o homem da sua vida. Todo homem vai fazer isso. Então, é melhor você escolher um que realmente goste de você’. E, por isso, eu acabei perdoando e fazendo vista grossa. Aí eu ficava pensando: ‘Realmente foi uma frase fora de contexto. Eu não vi o print inteiro’. E voltei com ele. Todavia, eu sempre ficava complexada, achando que a qualquer momento eu ia passar por isso de novo. Então, não fez mais sentido continuar”, conta.
Hoje em outra relação, também monogâmica, porém saudável, Lara comenta: “Quando estamos em uma relação monogâmica, parte-se do princípio que você é suficiente pra mim e eu sou pra você, é isso. Existem outros formatos de relacionamentos, que podem ser feitos, estando em comum acordo. Mas você exigir de uma pessoa uma monogamia e em retribuição fazer algo diferente, eu acho muita sacanagem, desleal”.
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Depois de tanto se falar sobre traições em relações monogâmicas, é natural que algumas pessoas se perguntem: “Então, a traição está nesse tipo de acordo, que teoricamente está fadado ao fracasso?” ou talvez “Esse tipo de acordo não é mais pra mim”, mas isso precisa ser visto internamente e individualmente. Esta foi a dúvida da Sabrina Miranda, cientista política: “Não é que a monogamia não funcione, mas ela é difícil de ser conquistada. Principalmente porque as pessoas não percebem o nível de amor e intensidade que elas precisam nessa relação. Eu vinha muito com esse pensamento que a monogamia não funcionava, traí meu ex-namorado algumas vezes, que é uma pessoa muito legal, que não merecia. Na verdade, na maioria das vezes, ninguém merece. Mas, isso era algo que eu pensava: Será que não é pra ser uma relação monogâmica mais? Será que realmente não funciona? E o que eu entendi é que, na verdade, funciona se você estiver em uma relação que lhe basta”.
Foi fazendo terapia, olhando para o lado, e conversando com a irmã que ela foi tendo outras perspectivas: “Minha irmã é uma pessoa que tem tendência a trair, ela já traiu vários ex-namorados, mas o atual, ela nunca traiu. E eu a questionei: ‘Tu deixou de ser, safada, foi?’. E ela me respondeu que não, que tem tudo o que precisa com ele e que não precisa ficar olhando pro lado. Não é que você não sinta desejo, óbvio que vem, impossível desejar só uma pessoa o resto da sua vida, mas você consegue controlar esse desejo. E acho que você controla porque você sente o suficiente. No meu caso, acho que eu não amava intensamente o meu ex”, conclui Sabrina.
Contudo, não são só as relações monogâmicas que são fáceis de ter traição, há quebras dos acordos nas relações abertas também. É o que explica Marina Pinheiro, professora de psicologia, linguagem e psicanálise: “Não está presente só nas relações monogâmicas, mas também nas não monogâmicas. Se teve uma quebra de acordo do que é combinado previamente, é traição”. E complementa: “Nenhuma relação está blindada porque todos somos humanos e somos passíveis de mudança. Nós mudamos, as pessoas não são idênticas. Pode ser o desejo de um novo horizonte afetivo. A traição não tem só um sentido em nossa cultura. Ela representa diferentes pessoas”.
Por fim, Marina chama para uma reflexão: “Apesar de namorados ou casados não somos posse, objetos. A traição precisa ser reconhecida como um registro humano. Inclusive, não criminalizar a traição para evitar casos agressivos, como feminicídio. Moralizar é culpar. Ninguém ama quando está preso nessa cadeia. Ninguém fica com alguém, sem desejar estar. A moralização desimplica essas formas de conhecimento dessa nossa face que é humana”.