Tribunais nos EUA começam a receber ações de artistas contra empresas de inteligência artificial e já há jurisprudência de que arte criada por IA não é protegida pelas leis de direitos autorais
Redação Culturize-se
Em agosto, a Justiça americana decidiu que arte feita por inteligência artificial não é protegida pelas leis de direitos autorais, algo que foi percebido à época como positivo para os movimentos grevistas em Hollywood que lutam para regular e desestimular o uso de inteligência artificial na esfera criativa por estúdios de cinema.
Essa jurisprudência agora é testada conforme se intensificam os questionamentos na Justiça acerca do uso de inteligência artificial à mercê de um debate ainda incompleto sobre regulação da tecnologia.
Escritores estão concentrando seus esforços para impedir que empresas de inteligência artificial (IA) usem suas obras protegidas por direitos autorais para treinar sistemas de IA, desta vez mirando na Meta e na OpenAI em ações coletivas. Na terça-feira (12), um grupo de escritores renomados, incluindo Michael Chabon, entrou com uma ação contra a Meta em um tribunal federal da Califórnia, acusando a empresa de violação de direitos autorais.
Eles alegam que a Meta coletou uma grande quantidade de livros na web, que foram usados para criar obras que supostamente infringem seus direitos autorais. A OpenAI foi processada em 8 de setembro em uma ação coletiva idêntica alegando que as empresas se beneficiam comercialmente e lucram com a coleta não autorizada e ilegal dos livros dos autores. Em ambos os casos, os autores buscam uma ordem judicial que exija que as empresas destruam os sistemas de IA que foram treinados com obras protegidas por direitos autorais.
Essa ação judicial é a mais recente tentativa dos criadores de conteúdo de questionar a legalidade da forma como os grandes modelos de linguagem, como os desenvolvidos pela OpenAI e pela Meta, são treinados.
O cerne da ação é a forma como essas empresas coletam e usam obras protegidas por direitos autorais para treinar seus sistemas de IA. Os autores alegam que a OpenAI e a Meta criaram seus conjuntos de dados de treinamento raspando a internet em busca de dados de texto. Por exemplo, a OpenAI revelou que alimentou seu modelo GPT-1 com uma coleção de mais de 7.000 romances em seu conjunto de dados BookCorpus. No entanto, muitos desses romances estavam sob direitos autorais, e foram copiados para o conjunto de dados sem o consentimento, crédito ou compensação dos autores.
Além de alegações de violação de direitos autorais, o processo também acusa as empresas de violar a Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital, enriquecimento injusto e negligência.
O desenrolar dessa ação traz à tona questões legais complexas sobre direitos autorais no contexto do treinamento de IA. Por um lado, há precedentes legais que sugerem que a cópia de obras para criar respostas de texto não infratoras pode ser considerada uso justo, desde que seja feita de forma limitada e não substitua o trabalho original. Por exemplo, em 2005, o Google foi processado pela Authors Guild por digitalizar milhões de livros para criar uma função de busca, e o tribunal considerou que o uso das obras era justo, pois o Google apenas permitia que os usuários visualizassem trechos de texto, não fornecendo o livro completo.
No entanto, outro caso recente da Suprema Corte dos EUA, envolvendo o artista Andy Warhol, destacou que a exploração comercial pode ser um fator importante na análise de uso justo. A decisão ressaltou que o uso justo é mais provável de ser rejeitado quando a obra original e a derivada compartilham “o mesmo ou muito propósito similar” e quando o uso secundário é comercial.
Assim, o desfecho dessa ação coletiva dependerá, em parte, de como os tribunais interpretam esses casos e se consideram que o uso de obras protegidas por direitos autorais para treinar sistemas de IA constitui uma violação dos direitos autorais ou se é justificado como uso justo. Além disso, há questões sobre se os sistemas de IA podem ser considerados como criadores de obras derivadas e se os direitos autorais gerados por IA serão reconhecidos.
Especialistas apontam que um resultado possível desses litígios é a criação de um framework de licenciamento. Este ainda é um terreno sem regulamentação e algumas decisões recentes poderão dar uma ideia de como esse ecossistema irá se articular.
E Hollywood com isso?
É sem dúvidas um momento de pressão sobre as empresas que estão por trás do boom da inteligência artificial e aquelas que querem lucrar com isso. O resulta da ação coletiva movida pelos escritores deve servir como parâmetro para roteiros desenvolvidos por IA a partir de argumentos criados por humanos, mas o remonte é meramente especulativo à esta altura. Até porque há muitas formas de interação para a criação de um roteiro e mesmo de performances derivativas usando imagem e voz de artistas.
No Brasil
A advogada Carolina Garcia, especialista em temas ligados à direitos autorais, explica que por enquanto, no Brasil, segundo a Lei nº 9610/98, “são consideradas como obras intelectuais protegidas, as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte”. Importante destacar que a LDA menciona “criações do espírito”, conferindo portanto proteção às criações humanas, o que pode ser identificado claramente ao mencionar, no artigo 11 , que o autor é a pessoa física criadora de obra artística, literária ou científica”, explica Carolina.
A advogada ainda ressalta que no Brasil “ainda há um entendimento de que se interpretando literalmente o texto da lei, obras produzidas a partir de IA não seriam protegidas pela LDA, por não decorrerem de atividade criativa humana. Contudo, o assunto está sendo discutido e estudado e, mesmo não havendo legislação específica, a legislação vigente pode ser acessada para a solução de algum conflito daí decorrente, lembrando que o banco de dados utilizados para alimentar o sistema da IA também merece atenção quanto à proteção dos direitos.” É justamente esse o ponto que já está em discussão nos EUA.
O Projeto de Lei 2370/19 que estabelece regras para a publicação na internet, sem autorização, de obras protegidas por direitos autorais, está aguardando parecer do relator na Comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados.
Artistas atentos
Em julho, diversas organizações e alianças representativas de artistas assinaram uma carta conjunta expressão preocupação e cobrando providências no avanço do debate sobre inteligência artificial.
“O setor cultural e a comunidade criativa internacional serão alguns dos mais afetados pelo desenvolvimento desenfreado e pelo uso aberto de modelos generativos de IA”, postulam em trecho da carta. “Os formuladores de políticas em todo o mundo têm ouvido artistas, criadores e intérpretes cujas obras estão sendo usadas para treinar a IA sem sua autorização, remuneração ou mesmo reconhecimento, muitas vezes sob a aparência de “pesquisa”. Além disso, há um descontentamento social generalizado em relação às obras geradas pela IA e à falsa representação delas como obras de criatividade humana”.