Festival de Veneza precisou enfrentar as greves dos roteiristas e atores de Hollywood em 2023, mas conseguiu sair por cima. Confira o balanço final do evento
Por Mariane Morisawa, especial para o Culturize-se de Veneza
A ausência de diversos atores e roteiristas pode ter deixado o 80º Festival de Veneza menos brilhante – afinal, o glamour do tapete vermelho também faz parte de um evento desse tipo. Pior foi não ter Bradley Cooper, que é diretor de “Maestro”, além de co-roteirista e ator, para falar sobre seu filme. Mas, em geral, a seleção foi boa.
Mais do que em anos anteriores, Alberto Barbera, diretor de programação do evento, escolheu filmes que conversavam entre si. Como temas gerais, dá para falar sobre as masculinidades, homens obsessivos e carismáticos e suas crises e sobre o avanço de forças divisoras que marginalizam certos grupos.
No primeiro grupo, entram “Maestro”, de Bradley Cooper, “Ferrari”, de Michael Mann, “Bastarden”, de Nikolaj Arcel, “Comandante”, de Edoardo de Angelis, “O Assassino”, de David Fincher, “The Theory of Everything”, de Timm Kröger, “Adagio”, de Stefano Sollima, e “Enea”, de Pietro Castellitto. Mas também “Priscilla”, de Sofia Coppola, e “Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos, embora ambos tenham mulheres como claras protagonistas.
Um festival masculino
Foi um festival, portanto, bastante masculino. Na verdade, apenas cinco dos 23 filmes em competição têm uma mulher como a personagem principal. Em outros seis, há mulheres que dividem o tempo de tela com homens, ou que pelo menos têm importância suficiente para serem candidatas a prêmios, por exemplo.
Mesmo “Priscilla” e “Pobres Criaturas” falam de masculinidades, homens obsessivos e carismáticos. A diferença é que o foco está totalmente nas mulheres, que aprendem a se desprender deles. Em “Maestro”, Felicia Montealegre (Carey Mulligan) fica à sombra do marido, o grande Leonard Bernstein, mas também tem força. Ela tem um papel importante, mas não é o principal – o filme, afinal, chama-se “Maestro”.
No caso de “Dogman”, de Luc Besson, o protagonista é um homem, interpretado por Caleb Landry Jones. Mas ele é vítima de um pai e um irmão abusivos e luta contra tipos assim, encontrando conforto na comunidade drag.
Abraçando a polêmica
Curioso que seu diretor tenha sido acusado – e inocentado – de abuso sexual. Aliás, Veneza não temeu apresentar filmes de homens condenados ou ao menos condenados pelo público – Roman Polanski, considerado culpado de abuso sexual de menor, mostrou o horroroso “The Palace” fora de competição, e Woody Allen exibiu o delicioso “Coup de Chance”, hors-concours também. Allen nunca foi formalmente indiciado após as acusações de abuso por sua filha adotiva, mas as suspeitas e mesmo seu casamento com a filha de sua ex-mulher fazem dele persona non grata em muitos meios. Não à toa, ele filmou “Coup de Chance” na França, com atores franceses falando francês.
Nenhum filme resume melhor o outro tema do que “Origin”, de Ava DuVernay. Ela tomou para si o desafio de transformar o livro de não-ficção “Casta – As Origens de Nosso Mal-Estar”, de Isabel Wilkerson, em ficção, fazendo uma cinebiografia da autora, uma mulher negra (interpretada por Aunjanue Ellis-Taylor) casada com um branco que estava vindo de uma grande perda ao embarcar na pesquisa. Para ela, a opressão de pessoas negras nos Estados Unidos não pode ser explicada pelo racismo, mas por um sistema de castas que também aconteceu ao longo da história em outras partes do mundo, como na perseguição dos nazistas aos judeus e na marginalização dos Dalit na sociedade indiana.
O sistema de castas, segundo Wilkerson, apoia-se sobre alguns pilares que visam separar, desumanizar e oprimir o grupo ou casta excluídos.
Pois é, o que se faz com refugiados e imigrantes, bodes expiatórios de todo o mal. A crise dos refugiados é o tema de “Green Border”, de Agnieszka Holland, e de “Io Capitano”, de Matteo Garrone, que mostra a Odisseia de um adolescente senegalês. O tema aparece de forma oblíqua em “Comandante”, filme sobre o capitão de um submarino italiano na Segunda Guerra que resgatava os náufragos dos barcos que afundavam.
É também o que se faz com pessoas trans, que têm dificuldades de simplesmente serem quem são, especialmente em países como a Polônia, como mostra o filme “Woman of…”, de Małgorzata Szumowska e Michał Englert.
Pode-se até fazer uma relação entre os dois temas como sendo o patriarcado em geral. A verdade é que o Festival de Veneza mostrou que, seja no cinema autoral que vai para a Netflix, ou no independente, feito ao redor do mundo, os cineastas estão antenados com as crises que vivemos agora.